A velha placa de metal com os dizeres “A mulher que tudo vê e ouve, e que de todas as coisas sabe” estava na parte superior da porta. Deveria ou não entrar? A pergunta surgiu, mas não precisava de resposta. Nos momentos de indecisão, minha curiosidade sempre vence. Entrei. Subi a escadaria estreita, íngreme, que parecia não ter fim. Uma mulher, de olhar inquisidor, parada no último degrau, sorriu-me enigmaticamente, entre, moça bonita. Minhas cartas dizem tudo.
— Casarás em pouco tempo. Linda festa. Sorrisos, lágrimas, uma multidão, jardim florido... Homem bastante apaixonado, saúde frágil, curto destino, vida breve. Ele tombará sobre ti. Que tristeza, moça! Também vejo obsessão e fogo em teu caminho...
Não acreditei na profecia da mulher, obviamente, mas também não facilitei o trabalho do tal destino: nada de pensar em casamento, e nada de se relacionar com homens frágeis, jamais! Acabei o meu namoro no dia seguinte. Aníbal era bem franzino; certamente era forte candidato a uma vida breve. Sinto muito. Adeus! O tempo veio e eu casei, três anos depois, com Ambrósio, forte como um touro, alto, músculos e exames em dia, nada de fragilidade. O casamento foi simples, em uma praia, não houve festa, casei de azul, sem flores, apenas família como testemunha, dia nublado, duas fotografias apenas, tudo programado para dizer “não” às previsões da cartomante. Calculei que tivesse funcionado, mas foram apenas dois meses, três dias, e uma noite ao lado dele. A vidente venceu: enviuvei. Tal qual uma protagonista de tragédia grega, foi tentando evitar o tal caminho que peguei atalhos para ele.
O primeiro dia sem Ambrósio foi de fato o mais difícil. Começou já no momento da morte, quando precisei me soltar literalmente daquele corpo, um metro e oitenta de carne sem dono, largado sobre mim, depois de cinco minutos de cama, ainda aceso, coisa triste, e eu imprensada, por baixo, confusa, a ponto de reclamar pela rapidez com que ele terminou antes do meu começo, mas ele permaneceu parado, calado, pesado, inerte. Belisquei suas costas, sacudi o seu rosto levemente, gritei. Ambrósio se foi. Haveria momento mais inconveniente? As cartas tinham razão, ele tombou, maldita cartomante!
Cuidar do enterro foi nauseante: era apenas um resto de mulher sozinha a tomar as decisões, a cor das flores, a sequência do velório, onde ficaria o corpo, a roupa que deveria vesti-lo, a hora de fechar o caixão, de iniciar a marcha para o cemitério, de seguir a vida a partir dali. Estava de existência empenada, solta, quase desmaiada aqui, quase apagada ali, meus pêsames, obrigada, um comprimido azul, um marrom, outro amarelo, analgésico, ansiolítico, uma manhã fria dando em tarde descolorida, depois uma noite fervente, tristeza, sobrevivi. Levei dias a calcular ausência de marido e sofrimento. Contudo, três semanas depois, enquanto ajeitava a papelada do seguro, pensando em quantas direções gastaria aquela enorme soma, muito mais do que eu supunha, senti um alívio, sobretudo horas depois, diante da nova boutique da cidade, provando o primeiro vestido a ser comprado sem a vigilância de Ambrósio, que beijava bem, mas detestava compras. Santa recuperação! Naquele momento, admiti: a viuvez pode ter suas vantagens, sim. Adorei a tarde, amanhã cuidarei do cabelo, das unhas, da pele, estou viva; não fui eu quem partiu.
Infringiu os protocolos da morte, comentou a vizinhança, sofreu pouco, chorou apenas nas primeiras noites, colocou cortinas coloridas nas janelas, deixou que o sol entrasse no quarto, comeu bolo recheado, usou amarelo na semana seguinte, tomou vinho, maquiou-se, foi ao cinema. Desse modo, concluíram, não gostava do finado. Todavia, era cedo para conclusões. Eu mesma não sabia as medidas exatas dos meus atos. Nunca fora boa em matemática, trocava os sinais, multiplicava quando deveria dividir, subtraía quando era necessário somar; não seria difícil inverter os sentidos diante da morte, atropelar regras, desandar. Não me julguem! Estou apenas reformando a minha vida, era como me defendia.
Num certo dia, cessou o desejo de comprar. Então eu soube, a ausência do meu marido começaria a incomodar a partir dali. Parei diante do espelho da sala. De repente, um arrepio profundo fez todo o meu corpo tremer. Em seguida, ouvi a voz de Ambrósio a sibilar algo no meu ouvido. Gritei. Corri para o quarto. Tentei dormir, mas rolei na cama por toda a noite, durante o mês inteiro, caí doente. Os sussurros do fantasma estavam em todos os lugares. Laura, meu amor!
Você precisa de Deus, querida, sangue de Cristo tem poder, minha secretária foi convincente, e tão atenciosa que conseguiu levar-me até a igreja para eu conversar com o padre. Aquela primeira visita à casa de Deus foi uma verdadeira faxina em minha alma: algumas linhas de João aqui, Mateus acolá, Lucas assim, Paulo para fechar os ensinamentos, não houve resistência, chorei o quanto precisava. De quebra, expulsei boa parte da minha vaidade; estava fragmentada, dilacerada. Agora, de acordo com as palavras do vigário, era só esperar que o Espírito Santo juntasse os cacos, e construísse em mim uma nova Laura. Enfim, disse ‘sim' a Jesus, santo forte, consolador de almas, aceitei a salvação.
Deixei a sacristia aliviada, olhei em volta, dei com o semblante das imagens, seus olhares de misericórdia, de lamento, de medo, de censura, uma artilharia apontada contra minhas privações de viúva, tão desnorteada que só me restava voltar no dia seguinte, e no outro, e no outro. Passaram-se meses. A visita à igreja tornou-se rotina. Ajoelhada, durante horas, implorava a Deus que apagasse a imagem de Ambrósio da minha mente. Isso você esquece com o tempo, querida, homem não é tudo, aquele lá em cima, sim, deve ser a razão da nossa existência. Minha secretária era formada em sofrimento. Apanhou durante dez anos do marido até que ouviu a voz do redentor; eu sei como é isso de ter homem, minha filha, hoje estou livre, fui ungida, ela disse, mas faz uma falta, repliquei silenciosamente. Certo dia, sentindo-me desesperadamente cristã, comprei todo o estoque de discos religiosos que encontrei numa livraria da cidade. Preciso me fortalecer, música acalma os ímpetos e a queimação de dentro. Ouvi e aprendi tudo. Ninguém tinha mais Jesus do que eu. Consegui. Estava transformada. Era um exemplo a ser seguido.
Todavia, semanas depois, o que era apenas a voz sussurrada, ecoando no quarto, na cozinha, nos corredores, ganhou corpo. Então eu passei a ver Ambrósio por inteiro. Trancava-me no guarda-roupa, e ele estava lá. Depois, no banheiro, também estava lá. O fantasma insistia, assobiava, gargalhava, estava sempre despido, como no dia de sua morte, do jeito que foi tirado das minhas pernas, uma indecência. Constrangida, resolvi revelar tudo para o padre, com todos os detalhes, inclusive admitir um tanto de culpa, já que eu mesma havia implorado que Ambrósio voltasse, que não me deixasse sozinha, que me socorresse nas horas de necessidade.
Não há dúvida, a alma do finado precisa de reza, tomar o seu caminho, os que ouviram a história recomendaram. E combinaram um descarrego para a terça-feira da semana seguinte, eu agradeço, em nome de Jesus, e Ele estará lá, minha filha, para iluminar sua vida. No dia marcado, enquanto esperava os colegas da igreja, tentei uma última conversa com o finado, você continua bonito, e firme, se ao menos fosse de carne, adeus, querido. Minutos depois, a casa foi sitiada pelo Exército de Cristo, que era grupo famoso na cidade, quinze integrantes, encapuzados, rezando, cantando hinos, clamando aos anjos e aos santos a proteção daquela jovem. Além disso, havia o braço firme do sacerdote, homem de Deus, respingando água benta sobre a minha solidão de viúva, sobre a mesa da cozinha, dentro da banheira, sobre as almofadas; era força demais contra um fantasma. Ele deixará de atazanar, sim, a secretária sabia das coisas, já havia presenciado a expulsão de outros espíritos zombeteiros. Cantaram, rezaram e conseguiram. Ambrósio pegou a primeira trilha para o desconhecido, e não deixou rastros. Finalmente. Entre os sorrisos eufóricos, todavia, estava uma certa curva na minha boca, um desvio, que não sorria com as demais intenções do grupo, obrigada, amigos, fechei a porta, suspirei. Aliviada? Será?
O dia seguinte avançou tranquilamente, o fim de semana, o mês todo, passou um ano e nada, o fantasma não voltou a incomodar. Não havia mais assombração. Restava então desenrolar o resto da vida ao lado de Jesus, subir outros degraus, lutar contra a vaidade, o egoísmo e a luxúria. Repetia versículos bíblicos ininterruptamente, diz que protege, não vacile, minha filha, "segura na mão de Deus, e vai". O padre afirmou que o terço funciona quando a imoralidade aponta no pensamento. Então, obstinadamente, eu rezava, respirava fundo, corria para a igreja, suava, acelerada, atazanada, alterada, descontrolada; era uma guerra. Ajoelhava-me, Bíblia na mão, crucifixo no peito, olhar fixo no altar, uma oração para os desejos, duas para as vaidades, três para coisa mais séria, saía de lá quase noite, doída de tanto negar minhas necessidades, jurando que o calor havia passado. Certa vez, questionei se aquele seria o fogo obsessor que apareceu nas cartas da vidente.
Assim começou o sufoco, com a temperatura do corpo, que subia. Alguns homens provocavam essa reação. Desse modo, para minha segurança, deveria manter distância deles, principalmente daqueles que tinham barba, dos que não tinham também, dos que andavam sem camisa, dos que usavam terno e gravata, dos que vestiam calças justas, dos carecas, dos cabeludos, dos garçons, dos policiais, do carteiro, do encanador, dos que suavam, dos que sorriam, dos que falavam, daqueles que pregavam, não, do padre, não, jamais! Virgem Maria, como é isso? Nos dias menos movimentados, a coisa piorava; evitava ficar sozinha em casa, tinha sempre uma amiga por perto. Isso é obsessão do capiroto, filha, insistia minha secretaria. Banhos demorados, nem pensar. Nudez diante do espelho, proibida. Essas coisas alimentam fogo indevido, estava tudo no meu regulamento. Televisão, jamais. Era a pior das tentações.
Contudo, Rosirene, colega do curso bíblico afirmava que era necessário conhecer o inimigo; não perdia um só capítulo da novela das nove. Refleti: a mulher sabe o que diz, quem tem Cristo, não teme. Sentei-me durante cinco minutos diante da tevê, escolhi o canal das novelas, o coração era uma batucada, bobagem, possuo as armas necessárias; são imbatíveis. Então apareceu o protagonista da trama, tão bonito que me esqueci da batalha, e aí distraidamente reparei no corpo do rapaz, a boca dele era inacreditável, um absurdo, escandalosa, carnuda, vermelha, o jeito como ela se abria, depois se juntava à boca da atriz, e as línguas passeavam de um lado para o outro, uma perna deixada assim, um braço esquecido ali, e aquela música romântica dizendo ‘fique meu amor, não vá, eu te amo', que lindo, eu também quero. Não posso! Levantei-me do sofá. Desliguei a tomada. Corri para a janela, estava suada, aflita, descompensada, chorava e sorria, como uma doida. Decidi que detestava a novela, que o ator era o próprio Lúcifer, que venderia a televisão. Um inimigo a menos dentro de casa, em nome de Jesus. Como penitência pelos pensamentos indevidos, passei meia madrugada de joelhos no canto do quarto, cantando hinos de louvor.
Na manhã seguinte acordei quebrada, indisposta, mas satisfeita. O castigo tinha banido o mal: o pensamento da indecência se fora. Não obstante, permaneceu o calor. E Jesus, por que não me ajuda? A queimação deve ser hormonal, querida, minha secretária tinha sofrido coisa parecida, explicou que uma voz do além lhe revelara no passado. Nos argumentos da mulher havia sempre essa voz, e ela supunha que era a de Deus, por isso não errava, e eu acreditava. Fui ao médico. Nenhum distúrbio hormonal, Laura, você tem saúde no lugar, nem chegou aos trinta, quem lhe falou sobre hormônios? Deus me revelou, por meio da minha secretária, ele diz, ela escuta, pois tem unção, e eu sigo tudo. Ela tem também muita imaginação, o médico completou. Você é casada? Não mais, por quê? Procure uma companhia, faz bem, diminui a temperatura nos lugares. Sou uma pessoa de Cristo, doutor, meus desejos foram represados, não quero mais isso. Entendo. Nesse caso, reze para não se afogar no lago que se formará com essa represa. Seria conveniente conversar com um psicólogo. Vou, certamente, mas sei que minha cura está em Jesus.
Revelei minha história ao psicólogo. Ele tentou explicar tudo à luz da ciência: você projetou assim, suas frustrações seguiram adiante, por trás dos atos, das palavras, eu entendo de traumas, não me esconda nada. Foi a cartomante, que leu minha mão, e Ambrósio morreu, agora eu me entrego à reza diária, clamo, grito pelo redentor. Sofro de fogo obsessor. Como psicólogo, digo que isso não basta; religião não conforta certas ânsias. Saí desolada de lá, assando por dentro. O homem era lindo! Sangue de Cristo tem poder, mas será que pode com a minha obsessão? Então eu comecei a esquentar de um jeito insustentável; evitei sair de casa, pedi socorro às companheiras de caminhada. Elas agiram.
Na semana seguinte, um grupo de mulheres foi até a minha casa. Querida, viemos resgatar teu espírito sofredor, há vaga na nossa comunidade, vida de clausura dá jeito em queimação e necessidade; você vive para o criador, fecha a porta que leva ao mundo, abre algumas janelas para o Espírito Santo, entrega-se à oração, nega a carne, tudo é maravilhoso, abstinência e abstração, aceita? E assim troquei meus vinte e sete anos mundanos por aquela proposta de vida desapegada. Elas me levaram pelo braço; afastaram-me do mundo, mas nem assim passaram a chave nos meus desejos.
O vazio permaneceu até aquela madrugada de insônia, suor e paredes, quando o padre me visitou. Ainda à porta ele adiantou que trazia consigo minha cura. Arrisquei um pensamento, aquele santo homem diria palavras de sabedoria e de libertação; todavia, calou-se. Nada havia em seu poder além de tremores e sugestões. Aproximou-se. Perdi a voz. Lembrei-me do recado das cartas, de Ambrósio, do destino, da solidão, da ânsia, do fogo e do pecado em minha vida. E se esse fogo não for uma presença, mas uma ausência? E agora, quem me segura? Proteja-me, Jesus!
O padre sentou-se, colheu minha temperatura, tragou um tanto do meu fogo com seus olhos redondos, continuei queimando, queimando, veja, vejo sim, este lugar tem um propósito, há uma saída para o corpo quando a alma não vigia. Como? Fingi que queria entender, mas não precisava. Coisas do corpo só nele se resolvem. Confesse. E eu confessei àquele homem a história que lhes conto. E outras. Ele ouviu tudo, atento, acessível, o padre é um santo homem, não tem pecados, só veio para me livrar dos meus ímpetos. Despiu-me, e deitou-se sobre mim, e, diferentemente de Ambrósio, não morreu. Naquele momento ocorreu algo inesperado: minha temperatura diminuiu.
Ricardo Fabião (Fevereiro, 2022)