outubro 29, 2010

Por uma diferença inteira



Para Oscar Wilde,
que não pôde usufruir, plenamente, uma diferença inteira.


Naquele instante desconectado, entre danças sem música e palavras sem som, ele era apenas o menino que não sabia protagonizar uma história de menino como um deve ser. Faltava-lhe o código. Cansava então disso sozinho, dentro do ar pesado, parado, com sua bola de pensamento mudo a mover-se lentamente sob o queimar da tarde. O pouco barulho do seu passo era de não acordar o mundo como ele é, nem de permitir a imaginação como ela voa, porque imaginar é ter muito tamanho fora, ficar grande demais, solto no susto que há em viver. Restava-lhe então calar e pôr disfarces sobre a transparência dos seus desejos. Assim, experimentando solidões, percebeu muito cedo a diferença, que era uma força ainda no grão. E assustou-se.
A partir desse incômodo, pôde finalmente constatar: ser menino é de um cuidado tão assim que só o medo de não ser na medida certa traduz a dimensão. O mundo dita o formato de sê-lo, e não sabê-lo ao certo é menos viver. Mas o menino do pensamento mudo não acatava de tanto quase; ouvia as regras e cansava disso, dentro da tarde suspensa, oca de tanto descaminho. Como me encaixo nas coisas? Que tipo de amor carrega um diferente? Enquanto não respondia a isso, chegava a noite, e ter apenas onze anos é de um medo já no começo de gente, um sendo que avança mais fundo com o tempo, e esse afundar é muito escuro quando não há chão. Corria então para o quarto, com o coração fora das horas, desejando encontrar-se consigo. Lamentavelmente, ali o silêncio logo ampliaria a sensação da diferença – algo que só cresceria para muito distante do seu entendimento. Punha-se à frente do espelho, despido, vencendo as máscaras da matéria até enxergar-se completamente, mas lá, muito dentro, morava uma voz que não era a sua, e era. Acenava em vão, e não se reconhecia.
Deitava. Ficava de contar minutos, apenas respiração, na penumbra parada entre tomar conhecimento de si e aceitar-se. E logo sobrevinha a bola de pensamento mudo – quantas dúvidas comporta uma vida tão pequena? Puxava o lençol, e tomava todo o impasse para esconder dentro dos sonhos, isento de cores, que o dia seguinte seria novamente o percebimento do desvio, e assim o sempre. Não havia régua que o medisse, não havia chão em que aprumasse sua transparência disfarçada; seu código era outro, seus brasões, sua ânsia, seus suores. Seu sangue seria derramado por outro sacrifício quando chegasse a hora. E assim permanecia a incerteza: eu vou com isso?
O mundo a repetir que meninos são meninos como meninos devem ser conseguiria converter sua diferença em semelhança? Haveria tal força? E a menina, dentro dos seus olhos, refletida no espelho, quem era? Com o traço impreciso de gente pequena rascunhava na mente o mundo como sendo uma imensa bola hermética, onde códigos e leis têm mais protagonismo que pessoas. E, percebendo-se, concluiu que a diferença é uma bola ainda maior, da qual todos fogem a calcular que não há caminho para um retorno. Ninguém quer arriscar permitir outras estradas; é mais cômodo reproduzir os desconhecimentos. Ele, no entanto, tão deixado ao acaso, rolava nisso de não caber exatamente no formato – um desviado, dançando sem música, dentro da vida que nunca passava.
Tudo assim percebido doía baixinho no início do sono, sob aquele lençol deslizante que nunca cobria. Depois viriam as manhãs para o cumprimento dos calendários. Ao mesmo tempo, cresceriam os silêncios, e assim outro enorme cinza se transformaria em tarde, e a tarde não traria solução para a menina dentro dos olhos no espelho. A diferença levaria o menino a dançar sem música, a compor lamentos sem doer em lugar certo. Seria interessante experimentar o vão inteiro do desvio, mas, depois dos cálculos reais, ele compreendeu que era incerteza demais para o tanto de normalidade que circundava o seu mundo.
Numa certa manhã, utilizando diversos disfarces, conseguiu trancafiar a diferença dentro de algum ponto inativo de sua mente. Para concluir o processo, maquiou gestos, travou braços e deixou de ouvir a música que o fazia dançar. E temendo que a diferença lhe escapasse pelos olhos, passou a evitar espelhos. Em seguida, deixou emergir de si um ser inventado, que passou a distribuir sorrisos que diziam “sou normal; aceite-me, por favor”. O restante da história não demorou a ter encaixe. A imensa bola hermética do sistema que ali passava no sempre, superlotada, com o mundo dentro, no caminho que deve ser, parou na primeira esquina, e ele entrou. E foi muito bem recebido por todos; afinal, a diferença foi silenciada.
A partir disso, com os ímpetos  deixados às grades, um bem-estar inventado passou a contar a sua história: "Estão vendo? Eu sou normal". Contudo, por estar um disfarce constituído de forças antagônicas, há quem encontre nisso mais de um final na história.

Ricardo Fabião (Outubro - 2010)

Texto para o desafio de novembro - Fábrica de Letras
Tema: Transparência

A imagem "O menino e a boneca" é da autoria de Graça Martins;
disponível na página  

outubro 02, 2010

O segredo da tarde sem luz



Tudo começa com a chuva de algum dezembro, assim inesperada para o tamanho do dia. Para os que dividem o instante isso desce além das necessidades, pois não excede alguns baldes a sede das plantas, nem comportam mais que dez minutos de água caída as ruas e as praças. O que molha depois disso impõe ilhas ao dia, desmonta projetos humanos. E como há desvios nisso, imaginemos uma casa no meio de tudo, e dentro uma cara de menino impossibilitado na janela da sala; depois, lá fora, com um amarelo de vestido sob a tarde, a menina da história, que corre com a mãe até alcançarem o primeiro portão aberto, e logo uma varanda, que serve de abrigo até que não haja água demais no céu para seus trajes de sair. Calculemos agora a intenção do destino: o menino corre até a cozinha, mãe, há intrusos em nossa casa. Da janela, porém, eles logo compreendem menina e mãe, pessoas que vêm com a chuva, que logo retomam seu caminho, não há problema em acontecer numa varanda de empréstimo. Lamentavelmente, é natureza da chuva não corresponder às horas e aos desejos, e o tempo avança ali. Então fica bem oferecer uma fatia de bolo à menina com quase oito e à senhora com algo depois de quarenta, que não representam perigo. Elas entram, boa tarde, então as mulheres se reconhecem de algo antes, e nisso elas se inserem como se fossem velhas amigas. Os dois menores, silenciosos, de olhos na diferença, buscam outra linguagem, a da desconfiança, da confirmação de posse do território, o ajuste de forças que sempre determina o instante seguinte. Sentam-se e comem de olhos no impasse. Quando o assunto das mães torna-se muito adulto é melhor dizer às crianças que sejam crianças em outro lugar. Sejam. Elas procuram lugar, procuram, procuram, e, de tanto que são crianças, identificam quintal e chuva como a melhor das possibilidades, sejamos então felizes. Assim, com meias roupas, as de baixo, sem cálculos disso, eles entram no mundo molhado da tarde sem luz; deixam-se aos saltos, aos impulsos, imaginam piscinas nas poças lamacentas, arriscam abraços, ensaiam olhares, percebem-se, correm, sorriem, caem, misturam-se aos cheiros do chão. Ele a beija na face, sem entendimento, sem medidas de fazer, entretanto, considera mais estranho todo o resto, o impedimento, pois logo ecoam os gritos das mulheres, um, dois, três, muitos; ele toma palmadas e ela é arrastada pelas ruas com o vestido amarelo na mão. A família da garota, gente que responde bem aos ditames da década de 50, deixa o bairro no dia seguinte, certa de que esquecer completamente é caminho possível. Depois disso, como sabemos, o tempo transforma crianças em adultos, desvios em segredos. Hoje, eles não se conhecem, não lembram mais o fato; afinal é apenas uma tarde no meio de todo esquecimento necessário ao vivente. Todavia, não sabem dizer ao certo por que gostam tanto do cheiro sem luz da chuva - algo que futuro nenhum pode transformar em pretérito; conjuga-se sem verbo, alheio à consciência, em eterno presente. Não passa.

Ricardo Fabião (outubro, 2010)

Texto para o desafio de Outubro - Fábrica de Letras
Tema: O cheiro da chuva

setembro 22, 2010

Cartas ao dia seguinte

 
"A vida é como um sonho; é o acordar que nos mata".
(Virginia Woolf)

                 Logo que se firmava o sol, ela acordava. Abria os olhos, e rapidamente deixava a cama, explicitando o seu descontentamento por dormir além do permitido. Estava atrasada, como sempre. O tempo, segundo sua percepção, era um senhor implacável, um negociante inflexível. Assim sendo, apressava-se em pôr organizadamente todas as suas atividades diárias. 
    Antes dos afazeres, porém, caminhava até o portão da frente para conferir sua caixa de correspondências. Apanhava os envelopes, abria-os, e logo estava a sorrir ou a chorar com os enredos registrados no papel. Depois, punha-se a fazer curvas no interior da casa, indo de um lado a outro, julgando-se a mais atarefada das mulheres, limpando, mudando objetos de lugar, com estratégia e cuidado, como se fossem peças num jogo de xadrez. Os relógios, espalhados por todo o ambiente, impunham-se como sinais de trânsito, como juízes inquisidores de suas ações, atirando-lhe flechas de prazos e atrasos. Olhava-os, evitava-os, e rapidamente iniciava outra atividade. Não poderia parar. Nunca.
        Era isso: ela aparecia vivendo assim, desde as primeiras horas, entre os despertos raios da manhã e as lacunas adormecidas dentro de sua mente. Sem saber os caminhos e as saídas, entretinha-se com vassouras e ferros de passar, fingindo-se preocupada com as exigências do seu dia. Inventava esse caminho de ter o que fazer até que não mais houvesse o que pensar, e não cansava dessa fuga. O que se comenta é que ela guardou a última lembrança de existir no sótão, para que não desse com o peso de ser nas horas. 
        Nessa falta de luz interna se amplificaram as ausências, todas, e, ali, sem dia certo, data, sem ar, só mesmo uma desistência de vida cabia. Quando depois do sol, concentrada, escrevia cartas na varanda, para que no papel pudesse tornar-se personagem principal de alguma história. Eram as novidades do dia, importantíssimas, convinham a uma solidão. Escrevia-as com estreitura e contenções de quem confessa pecados. Antes de deitar, guardava as folhas escritas dentro de envelopes coloridos, e os levava para a caixa de correspondências. 
        Horas depois, assim que se firmasse o sol, ela acordaria sobressaltada, descontente com a falta de tempo, e repetiria a sua trajetória diária, vassouras, ferros de passar, panelas, coisas do seu sempre. E leria as cartas que recebera, com as quais, sendo ela emissora e receptora, retroalimentava sua solidão. Com o entardecer, estaria concentrada na varanda a lhe escrever novamente. Inventava algum remetente saudoso; depois, preenchia o espaço do destinatário com o próprio endereço. O envelope dormiria na caixa de correspondência, e de lá seria retirado por ela no dia seguinte.
       Ainda no portão, acreditando estar surpresa, gritava: "chegou uma carta para mim". Abria-a, e conseguia sorrir absurdamente com as histórias narradas no papel, algo apreensiva, com ânsias de adolescente. Emocionava-se. Os parágrafos traziam as narrativas felizes do seu interlocutor, e ela, atenta, lendo, sentia-se importante, aquela a quem os amigos procuram quando desejam escrever suas aventuras. Lia uma vez, duas, às vezes uma lágrima escapava, denunciando a realidade. E como ainda era manhã no mundo ali, corria ao fogão, apressada em pôr panelas no fogo, pois logo haveria crianças a correr na varanda, a saltar por entre os arbustos do jardim, tudo de muito movimento e vida ao ar livre. Mentira. Não havia criança para uma instalação de luz de dia diferente; até o sol naquela realidade era só queda. 
        A casa havia sido deixada ao que cala e seca, aos caminhos sem ida, e ela era mais impasse que mulher; por isso a importância da leitura em voz alta daquelas cartas ― para que delas reverberasse um destino diferente, uma saída aos ouvidos. E ela não ia mais que isso, dividida que estava entre os dois destinos possíveis do seu dia: entregar-se à história passada, que não mais voltava, ou àquela presente, que não avançava, um ponteiro de relógio quebrado, um mundo sem ir. Somente o tempo, com as chaves de tudo, seguia no mais para lá das coisas, a devorar as curvas de depois muito. 
        Ela fechava as cortinas, pois não queria luz nem horizonte. O de qualquer jeito de sua vida era demais pesado para se levar sabendo. Agora, ela e aqueles objetos abandonados eram uma casa no meio do caminho empoeirado, sem filhos para uma aflição, sem par para um café. Ali ninguém chegava; por ali não se passava. Nenhum viajante perdido bateria a porta para pedir água. Nada batia naquela solidão além da porta entreaberta, perpassada pelos dois ventos sobreviventes, confusos. Coisa nenhuma alcançaria aquela solidão, não sob aquelas condições, estando toda ela dentro de sua conflituosa mentira. 
        A casa fora tomada como fuga; ali ela trancou-se, e pôs chaves em tudo. Não demorou para que todos esquecessem o caminho que levava àquela mulher, que trancafiou as possibilidades de ir com a vida após ser deixada sem amor ao próprio passo. Dessa maneira, alheia, com o deitar do sol, escrevia sempre. E foi assim até o instante em que deixou de ver-se e de ouvir-se, e logo a esquecer-se de ser; mas não morreu quando chegou o dia: preferiu seguir com a solidão. 
        Guardou-se eternamente dentro das cartas, de todas aquelas que havia inventado e das outras, as que iria escrever, e lá permaneceu ausente de tudo ― dentro da caixa de correspondências. Com a chegada da noite, ela escrevia cartas ao dia seguinte.

Ricardo Fabião (Setembro - 2010)

setembro 19, 2010

Depois do escuro das coisas


Aquela criança era da parte mais oeste que se imaginava quando alguém dizia medo; e era moradora desse lugar que não constava no mapa, que nem mapa havia, nem mesmo desenhista, um quase existir, que não crescia e não diminuía, só havia com seu tamanho entre os quatro limites, e era o começo de tudo. E ninguém ali tinha coragem de aventurar um só pé mais oeste depois disso, porque haviam dito que indo para lá dormia o sol, e deveria ser mais quente que qualquer coisa mais reluzente de se conseguir ver. E por ser o lugar do seu descanso, um ninho aceso no meio das encostas, assim com tanto amarelo, o sol fatalmente sugaria as outras cores para dentro de si. Não cabia nem pensar nesse destino de uma cor só; melhor era ter medo, para ser mais do sossego que reside em não saber. Os habitantes desse receio, por isso, com o oeste do mais assustador de imaginar, gostavam de pintar o sol nas paredes, do modo mais intenso do seu arco diário, temendo que o astro pudesse morrer para sempre de tanto oeste que repetia no passo do céu e ser por isso esquecido. Ali, o sol era a presença maior, e sem esse entendimento não havia seguir. E todos cultivavam esse cuidado só de calcular que o medo pudesse ser maior que a noite, que já levava muito horário com o azul apagado. A menina, no entanto, mais curiosa que a razão de ser do mais oeste do mundo, resolveu seguir o sol para saber onde ele fingia que morria antes do escuro. E correu sem saber e muito, acompanhando o fio da luz caída, que de tanta natureza só sabia o destino inatingível de oeste. E porque era imensa a bola brilhante, assim deveria ser o ninho em que ela deitava a gerar o dia de outras vilas sem luz. Logo a grandeza seria notada. Mas a menina cansou de tanto que não achou sol naquela largura de noite, e dormiu por cima de uns escuros que encontrou no caminho. Até que veio do leste a primeira luz de sempre. E desse lugar alheio, a menina entendeu que todo leste, por mais imaginado que seja, tem um sol de nascença, e todo oeste, por mais lá indo longe de tudo, leva consigo o sol para o seu depois. E ela ficou feliz de perceber assim o sempre das coisas. Enfim, a distância do escuro do céu foi vencida. E foi por saber mais do oeste que a vila soube das horas que chegavam do leste, um ciclo, e que não havia cansaço em repetir-se. Depois, os habitantes marcaram o dia como tempo de viver, e passaram a ser assim, como se fossem livres. E porque ainda era início todos aprenderam. Então o sol passou a ser somente a bola curiosa que dizia os horários, com direito a uma morte de estrela no dia do seu último escuro. O que não se sabe, o caminho mais alheio, onde as luzes oscilam sem horas e datas, permanece dentro do homem, sem solução.

Ricardo Fabião (Setembro - 2010)

Texto para o desafio de Setembro - Fábrica de Letras
Tema: Livre

agosto 26, 2010

A fronteira


Para Ane, Jessiely, Keila, Renata;
mulheres que arriscam alma e palavras 
além de suas próprias fronteiras.


E com quatro dos símbolos aprendidos ele escreveu 'viver', e assim começou a história. Escreveu, que gostou, e soube como seguir. Agora cada um daqueles símbolos abria uma estranha passagem, o que ele tomou para si como ofício, para riscar nas coisas e arriscar-se mais. E desejou juntar todos eles, os vinte e seis símbolos, para chegar a todas as coisas do mundo, e com isso escrever tudo o que se ouve, o que se vê e se sente, e, com zelo especial, tudo o que se cala. Foi a professora, com algum tipo de luz nas mãos – como faz o sol, ao rasgar diariamente os caminhos e as cores aos seres –, que os desenhou no quadro, com giz e magia; e não só isso foi aberto ali, o que se escreve e a estrada depois: algo que ele não sabia onde era estendeu-se muito mais mundo adentro, que ele só alcançaria de juntar e dizer todas as letras. E foi sem cansar disso até muitos dias. Juntava então nos dedos as letras e as escrevia no ar. Escrevia, escrevia, ininterruptamente. Onde estava o mundo, lá punha seu dedo a escrever em cima das coisas, com exclamações nas ladeiras, interrogações no horizonte. Quando o ar estava cheio dos seus escritos, ele os apagava até que se refizesse o vazio para abrigar mais palavras. Até aí era a descoberta, o menino. Certa vez, no desvio do caminho, quis saber como era juntar humanos e sentimentos na mesma frase, e pôs 'Lúcia' em cima, no topo da paisagem, e 'meu amor' embaixo, no azul quase chão; depois riscou reticências para que isso ficasse ao tempo. E contemplou a possibilidade e a fundura daquelas palavras. E tão logo percebeu que alguém poderia ler o pedaço rabiscado do vazio, que com mão demais apagou além do que deveria, e deixou um buraco no céu onde antes estava 'amor'. E assustou-se. Sem aquele pedaço de ar faltava-lhe algum caminho até ser completamente. Mas não houve jeito: agora estava lá, em todos os lugares aonde ia, no que sentia e almejava, o tal amor apagado às pressas, doendo onde não estava, um furo no céu, um oco suspenso no olhar, que seguia junto vida adiante, desconhecedor das horas. E foi nessa margem pouco visitada que ele ancorou o passo; cresceu. Eis o adulto, o destino. Todos os dias punha escadas e escrevia no vão do amor arrancado, tentando chegar com palavras ao tamanho necessário para cobrir a falta, algo que aliviasse o incômodo de ter um buraco onde antes desenhado estava o primeiro amor. Quis remendar com linha e agulha, com adesivo e cola, mas nada fechava naquele lugar. Ainda fingiu que era janela, mas tinha de fato medidas de lacuna, de ausência, e não coube uma cortina. Depois ele soube que ali estava a fronteira de tudo. Um dia encontraram apenas a escada e o silêncio. No mundo de cá, aos de sensibilidade, restou o que ele havia escrito. Dizem que virou poeta.

Ricardo Fabião (Agosto - 2010)

agosto 11, 2010

Estranheza

Pode o autor ter predileção por alguns de seus textos?
Se me for dado tal direito, eis abaixo um deles.



A Victória, minha filha,
pela diferença que nos uniu
em tudo eternamente.

         Zafina sofria de esquisitice, de estranheza completa, um desajuste brabo, tão assim sem remédio que nem sete rezas em noite de lua cheia deram jeito; recomendaram em vão. E como não havia nome para o mal, nem tolerância à diferença, ela tornou-se a aluada da cidade, a desandada, uma tristeza. Como resposta, a garota apenas olhava, sorria inocentemente, mas adentrava o pensamento dos curiosos, invadia falsas verdades, desvendava intenções ainda na alma.
         Estranho. Assustador. E não havia quem pudesse com o peso daquele olhar, tanto que desde o nascimento negaram-lhe qualquer possibilidade de afeto. E ela, algo assim calada, parada diante das paredes, olhava-as demoradamente, quase aos sorrisos, como se naquele vazio encontrasse uma saída para o seu descompasso. E foi por medo, por temer a escuridão encontrada na alma das pessoas, que decidiu não mais falar.
         Havia começado as letras mas nada escreveu em cinco anos de chance. Sua única produção estudantil foi o desenho em que rabiscou uma família feliz: uma mãe que ama a filha, um pai, um irmão, e todos no mesmo amor com um sol lá em cima para todo sempre. Mas dinheiro gasto exige algo em troca, evolução, e tiraram-na do colégio: num dia estava lá, no outro, trancada em seu quarto.
        A natureza tem dessas invenções, alguém tinha de ser Zafina e a pequena foi justamente nascer assim. A família estranhou. O que é isso? Bem, aparece uma em cem milhões, o médico do posto de saúde foi categórico, mas dá para aguentar, não morde, não contagia, e não mata, apenas é esquisita. De que jeito, doutor? Segundo minha experiência, ela não se irrita, não deseja o mal, possui todas as virtudes; tudo que faz e gosta e sabe é olhar, muito lá dentro, no viés da alma, nas curvas, e descobre suas imperfeições e relevos; é difícil de aceitar, suponho, mas ela possui também habilidade para amar incondicionalmente; isso talvez amenize o pesar da moléstia. Ameniza nada, estamos convencidos, ela é realmente estranha, somos uma família tradicional, não podemos com tamanha aberração. Como alguém pode apenas olhar, amar e lidar com a verdade? É muito pouco para ser humano legítimo, não sobrevive, não dá certo no caminho, sou mãe preocupada. E a sociedade?
        Decidiram então manter Zafina em casa, sob eterna vigília, quarto separado, remédio controlado, alarme para entrar e sair, o amor é perigoso, ninguém sabe que rumo toma; os talheres foram marcados, a lavagem de sua roupa feita em outro tanque, a doença é rara, sabe-se pouco sobre contágio e tratamento, somos uma família que não arrisca desvios de conduta, há um brasão sobre nossas cabeças, a mãe repetia, mas veja, ninguém é desumano, aqui ela é bem tratada, há um rádio para distrair, sufoco, Zafina cresceu. A serenidade permaneceu, o olhar firme, perfurador, o sorriso e a clarividência, e isso incomodava os mais próximos, que eram, no mínimo, distantes. Um abismo para os dois lados, e o tempo foi junto a cair.
        Ela tinha vinte e três quando o irmão visitou seu quarto numa certa manhã. Ele todo sorriso, quer ver como é o mundo? Zafina toda esperança e feliz, com palavras ditas para dentro, só de olhares, vou ver como é o sol do longe, conhecer o mar, talvez um vestido novo, tomar sorvete, pensamentos. Sim, você vai ser livre, o irmão foi convincente, tinha de ser, havia projetos na cabeça, grandes segredos, um circo, uma atração assim “o olhar que tudo vê”, sucesso, dinheiro, é só esperar. Você trabalha para mim, eu cavo sua liberdade. Combinado. Mãe, eu levo Zafina para morar comigo, lugar distante, não voltaremos, a razão ele omitiu, não se preocupe, melhor assim, ficaremos livres dessa aberração. Por favor, esqueça que somos mãe e pai.
        E aconteceu: um trem, uma estação, um rosto virado de pai, uma boca torta de mãe, uma lama de primavera chuvosa, um rádio apertado nas mãos, um olhar a mais, um amor a menos, abortado, já sai, já foi, depois uma porta, um vagão, os trilhos e a manhã gelada. Os acenos espalhafatosos jogados por Zafina ricocheteavam na frieza do casal estacionado na estação, silenciosamente satisfeito por despachar um incômodo de duas décadas. Fizemos nossa parte, vamos para casa. Voltaram ao resto da manhã, uma cena muda, que era o início do vazio que guiaria suas vidas adiante.
        Era então um terço da viagem quando ele reparou nos olhos da irmã. Não nos conhecemos. Como é apenas olhar? Não responderás, eu sei. De que lugar vieste assim tão diferente? Segundo o que aprendeu, ela era perigosa, um castigo, aquela que jogou o nome da família no ralo, tanto que durante toda sua vida ele tratou de não entendê-la como irmã. Ela, alheia à inquietude daqueles questionamentos, só sabia a felicidade que era o chocolate em suas mãos. Não media a dor do passo que ia na direção contrária das coisas, por isso sorria para o desenho apressado das montanhas no lá fora, para o tamanho do céu, e escutava mais alto o mundo que só ela entendia. Tinha lindos olhos, o que haveria de errado com eles?
        Aquela jovem mantinha o rádio no colo como quem tem as chaves que abrem a alegria da vida inteira, seu único companheiro até ali. Ele pousou o olhar sobre essa cena, o que fizemos a ti, minha irmã? Zafina continuava de sorrisos, indiferente ao derretimento de sua vida, do chocolate, a sujar-lhe as mãos, o destino, deixada de qualquer jeito ao pé do instante seguinte; não era deste mundo, era feliz de não saber que seria infeliz se soubesse como era ser. Então algo revirou dentro dele, uma náusea, uma saudade de algo que não conhecera, coisas que iam e voltavam, talvez o engasgo a tomar outro caminho, tornando-se respiração livre, portões que se abriram, água jorrada depois de represada, inundação. Ela virou-se para ele, os olhares bateram-se demoradamente, um minuto eterno, e ela não disse, que não precisou, e ele ouviu tudo, paralisado entre contemplar e lamentar, por ela e por ele, pelo mundo, esse engasgo todo, pelo abismo e pela falta de acesso. Tudo ele diria se soubesse, mas palavras são instrumentos de uso complicado, e, recém-chegado de um longo silêncio, só coube na voz olhar, doer, olhar. E isso levou muito mais alma que morrer.
        Enxergar-se foi caminho que ele não soube administrar para um depois. Acostumara-se desde menino às meias verdades de sua família; de modo que uma verdade inteira foi clareza demais, desencadeou sensações controversas, interditou seus planos, teria que improvisar um desvio.
        Horas depois, a irmã dormia dentro do vagão gelado, com seu sonho de azul e calor, distante consigo só. Apenas uma incerteza de madrugada chamava por ele lá fora. Desceu na estação seguinte. Duas malas estavam ao seu lado quando o remorso o tomou para sempre. O trem partiu lentamente, fazendo curvas e buracos naquele resto de noite. Deixou ali o cinza-escuro do impasse e o homem da lágrima silenciosa.
        Zafina acordou. Levantou-se. Isso foi quando o movimento da janela mostrou-lhe como era calada e triste uma imagem de irmão deixada para trás. Sentou-se. Sorriu alheia, sem cálculos, sem destino. Ligou o rádio. Comeu outro chocolate perto da manhã.

Ricardo Fabião (Julho, 2007)

agosto 02, 2010

A estrela que não está lá


Antes não havia desejo, só o brilho. O desejo ela inventou quando quis ser luz de outros lugares, que brilhar de fogo por dentro era coisa muito só e sem razão. E como não havia escada para descer do alto do céu, nem avião que passasse naquele lugar depois de tudo, ela, a estrela distante, decidiu descer por meio de sua própria luz, que era muito rápida e acendia mais longe do que todas as coisas que iam. E foi com esse desejo que se deu sua viagem no nada, a primeira ida e a última. E com sede de mundo ela desceu pelos raios luminosos. Então começou a contagem acelerada dos anos-luz, estrada de vida e de morte, onde, quanto mais luz se deixa aos do caminho, menos se guarda para si; um deslizar para o próprio aniquilamento, um esvair-se que ela realizou com calor e intensidade. Seu destino era então encontrar um olho que desse com sua luz, alguém que lhe atestasse a existência, que a entendesse por estrela, e que depois uma estrada que não fosse solidão se estendesse aos dois, uma longa viagem. Entretanto, curiosamente, de tanta distância que alcança uma luz, alheia ao tempo que leva disso, torna-se impossível manter-se inteira na fonte, porque no cálculo espaço vezes tempo isso lá atrás já foi, passou, apagou-se, esfriou eternamente. E foi assim tão longe quando chocou-se com o primeiro olhar humano, e tanta queima levou de si, que a estrela já não era de fato um corpo na base, mas apenas uma trajetória iluminada, uma memória acesa, uma decoração de noite sem lua. E não houve mais contato com o lugar do alto do céu de onde saiu, nenhuma mensagem do mundo de antes, que era só brilho; não voltou, pois, para envelhecer consigo. Morreu a caminho de outro olho mais distante; não chegou. Mantinha-se agora no alto do nada mais azul distante como pontinho luminoso; contudo, já não estava lá. Havia utilizado ingenuamente todas as lâmpadas do seu estoque para clarear a escuridão dos olhares do caminho. E isso não foi suficiente.

Ricardo Fabião (Julho - 2010)

Texto para o desafio de Julho - Fábrica de Letras
Tema: "Uma longa viagem..."

Imagem: "Lost Star"
Página: http://paolodomeniconi.blogspot.com/

julho 29, 2010

Controle



Aos poetas e pensadores
Aluísio Martins, Fred Caju e Jairo Cerqueira, 
pela inquietação de ser, viver.

Nós corríamos no meio do mundo. Plenos. Minha mãe sempre à frente, com algum cabelo solto e sorrisos, levando-nos a correr, correr, sem cansaço, com alma e delírio, para que bebêssemos mais da vida a essência toda. Éramos os pequenos reis do instante, da distração, meus três irmãos ligeiros e eu, olhos em tudo, entregues ao acaso, porque era gratuito e era nosso único jeito de existir com alegria, correndo no meio de tudo. Então correr não iniciava, não findava; para nós era como imaginávamos uma família naquilo existindo. Nossa mãe era daquele jeito que corria alheia e sorria, e isso tinha ajuste para nós, nosso código de enxergar. E não importava o modo como as pessoas nos enquadravam em suas censuras: ‘essas crianças suadas, eufóricas, sorridentes, soltas’. Era só essa coisa que nos deixava felizes, com demência, com paixão. Todos diziam disso que não colava no mundo uma brincadeira assim de correr pelas ruas, de mãe com filhos, de qualquer jeito, ao ar. Viver, preconizam, exige seriedade e susto, isso é assim; tão desse modo que se repete desde que inventaram o mundo. Mas corríamos como se não ouvíssemos e fôssemos mais que o planeta todo a gritar, e éramos, pois tínhamos uma mãe com um sorriso para os dias, com um vestido ao vento e com amor para nosso sempre de criança, e nisso havia o brilho dos nossos olhos, e vivíamos, bastante. E eu como era o mais novo daquela distração de existir, o que menos sabia os caminhos, mais a mim deixavam o ofício de guiar as brincadeiras; só para sermos mais do devaneio e da falta, para gastar sorrisos ao fim do dia sem saber. É verdade que não avançávamos lugares nem pódios sociais, apenas corríamos; e incomodávamos porque retirávamos das ruas outro gás, irrespirável para muitos. E conseguíamos sorrir com o sol, só por ser manhã, loucura. Talvez. Então vieram as regras do mundo, em marcha, com amarras e seringas, e guardaram minha mãe dentro de uma casa de repouso para que não mais corresse sem razão pelas horas, feliz e alheia, que não pode; e foi lá onde ela nunca repousou do coração que só tem euforia. E naqueles que ficaram meninos e sozinhos, acolhidos em lares encomendados, não houve palavra que remendasse a tristeza. Não sei ao certo o que dizer do resto que foi para cada um continuar nisso, viver, porque no caminho dos dias, o mundo, feito dessa tristeza normalizada, em geral, só diz que é disciplina e sociedade, mas é controle mesmo... E não há medida pronta nas regras do dia que nos restitua correr daquele jeito - alheios, felizes, soltos, plenos de distração.

Ricardo Fabião (Julho - 2010)

Texto para o desafio de Fevereiro - Fábrica de Letras
Tema: "Loucura"

julho 20, 2010

Quando passar o sol que não passa


Para José Saramago

Ele não virá para hoje à noite,
Para nem mais uma palavra sua voz depois;
Só um tanto de lacuna no que silencia ficamos cá.
Talvez ele esteja guardado dentro do sol que passou,
Mantido sob o eterno calor do fogo de suas frases,
E de tanto sol que é, que foi, ficou, assim, à luz, suspenso...
Não mais anoitecerá conosco para só ir.
Talvez esteja aqui a dizer e não sintamos,
Ou certamente na revelação dos segredos, não ouvimos,
Que a descompasso da alma é ruidoso, não vemos,
Que o muro do mundo é alto, não vamos.

Hoje mais do que antes somos cegos,
Estamos de solidão em guarda, 
Um corpo solto dentro da roupa que não cabe,
Pois ele não virá para a distância da noite.
Então mais noite haverá que nos escureça ser,
Sem o tamanho do seu sol de manhã sempre,
E sem que se colha um mar para tão profundo existir.
Ergamos, pois, a tenda para que o escuro não entre,
Que doer assim nos mantém mais órfãos do que fôramos.
Cuidemos dos barcos e dos ventos,
Que sem o calor de suas palavras, 
Talvez faça mais frio viver,
E torne-se mais longe chegar...

Não, ele nunca mais virá para hoje à noite;
Só escurece indo...
Mas desconfio de que haja um só lugar
Que não tenha ficado mais sol
Após sua passagem.

Ricardo Fabião (Junho - 2010)

Na imagem: José Saramago em 1996
Fotografado por Sebastião Salgado

julho 10, 2010

Vida a dois


Para tentar dois em um - dois
Para confirmar um por dois - um
Para três quartos do amor - um
Para oito quintos de crise - dois
Para três tempos insistindo - um
Para um tanto de impasse - dois
Para cinco sextos de sofrer - um
Para um sexto do outro - silêncio
Para duas vezes ao dia - engasgo
Para um trago de dor - memória
Para dois tantos de tudo - um
Para o que resta de pouco - outro
Para sete nonos de aposta - um
Para o restante evitado - outro
Para noites de comemoração - um
Para resposta aos amigos - dois
Para onze décimos de farpas - dois
Para retornos interditados - dois
Para olhares incompatíveis - dois
Para novas possibilidades - poucos
Para oito oitavos de vazio - talvez
Para viver o resto dos dias - dois
Para um caminho avançando - um
Para um caminho ficando - outro
Para histórias partilhadas - um
Para tempos que não se atam - dois
Para depois da intolerância - dois
Para fim de um por um só - depois
Para um responder aos dois - tempo

Para tudo depois - o que é dos dois
Quando talvez dois diluídos em um
Ou para dois sendo um sem outro
Quando, para dois destinos, dois

Ricardo Fabião (dezembro, 2009)

julho 01, 2010

O repasse


Disparou a palavra 'amor' contra o carcereiro. Com urgência. Foi quase sussurrada, ao ouvido; aproximou-se, e disse assim, no último instante. Depois da palavra e do fio deixado pelo cheiro do uniforme na lentidão do corredor, o prisioneiro recebeu sua injeção de adeus, e nada mais se ouviu daquele corpo. Ficou só a palidez encerada sobre a maca e o vazio impune da seringa. Contudo, aquele carcereiro, de armas e poderes, convicto, defensor dos seus brasões de homem, até morrer por isso faria, recebeu aquela última palavra e olhar, um repasse de chave, e ficou intrigado, e sentiu apertos de uma estranha saudade a poucos metros do corpo inerte do criminoso. O detento havia acertado as esquinas daquele que não se conhecia, e levou dele mais sangue ao silenciar do que seria com um tiro; doeu o instante todo, invadiu mais lá. Depois ficou a reverberar nas horas de sempre o sentido da palavra que jamais se abriu por completo; se era uma chave, não poderia ser usada, não foi. Nunca. Por que o preso não esbravejou? Por que não maldisse aquele instante? Fúria de homem para homem é mais fácil de tamanho, está no entendimento da força. Mas não foi assim; ficou aquele olhar gritando para trás, na fundura do corredor que avançava, e o carcereiro acompanhou com semelhante ânsia até engasgar. O que valia aquela última palavra multiplicada pela profundidade daqueles olhos a dizer? O que pretendia aquele ‘amor’ mencionado ali, onde, estando já à morte, seria só uma palavra? Era mais que isso. Aquela coisa deixada ao ouvido abriu lacunas, tornou o chão um terreno movediço. Se o preso quis posteridade conseguiu; se em sussurro jurou amor, deixou ao carcereiro um corte na respiração, impossibilitado agora de conseguir sossego com o que exigia de si, conhecer-se, uma porção mais pesada que o inteiro. Recebeu na alma aquela vibração sonora, de poucas sílabas, que desmontaria em breve as moléculas mais resistentes do carcereiro, homem guardador de tristezas e pouca luz. Cavou, pois, fundo, o amor disparado em vez de balas, às vésperas do silêncio todo, do corredor para um nada enorme, nem céu por testemunha, apenas um sangrar. Foi com essa dor a esperança deixada na palavra, a última, com urgência de permanecer, algo que suplica por um eterno ficar. E os anos se arrastaram, e as insônias o mantiveram em constante suspensão. Por esse repasse, o morto nunca deixou de estar e de seguir junto; a palavra sussurrada ao ouvido só silenciou anos depois, juntamente com o homem firme, de armas vencidas, que nunca entendeu o sentido todo daquele disparo, mas que o abrigou em seu ser com memória e zelo, eternizado em sua versão original: ‘amor’.

Ricardo Fabião (Julho - 2010)

Texto para o desafio de Julho - Fábrica de Letras
Tema: "Disparou..."

junho 25, 2010

Estrada para um depois


A intenção dela, mesmo sendo à primeira vista, era estender aquele quase amor para servir de estrada aos dois, ainda que fosse uma trilha breve e estreita, guiada pela leveza dos primeiros olhares. Sorriu, e com a medida certa pediu a ele que acreditasse na possibilidade de um amor guardar caminhos para dois que se encontram na primeira vez. Ela gostava de arriscar, e disso poderia inventar um sentimento que avançasse mais do que deveria, assim, com tardes para um passeio no parque e noites para o cinema que passa os filmes mais românticos do mundo. E tanto amor ela possuía que aos dois bastava apenas que avançassem os dias. E falou, e sugeriu tudo, que quando conseguia amar rapidamente falava sem respirar palavras, sem dar-lhes o fio adequado, feito menina, ausente de controles, só tremores e suores, um acreditar. E por esse sentir quase sagrado ela olhava na direção de amar muito mais depois daquela noite, disposta a montar rituais e dogmas para sua crença de paixão eterna. E ele calado, era de uma luz quase apagada, pois não alcançava aquela diferença que ela tinha de almejar e ser. Ele queria estrada para um ser apenas, e não esperava levar amor para suas futuras manhãs, era deveras pesado. Não gostava de conversa, só a solidão tinha lucro certo para sua tristeza conformada. Contudo, disse 'sim' ao sacrifício de viver ao lado de alguém que acreditava na possibilidade de uma estrada estender-se para dois com duas verdades antagônicas. Então ela começou a gastar o amor para alimentar sua ânsia de mais seguir; e com ele gastava para compensar os buracos provocados pela falta de tudo. E assim foi. Ainda no primeiro mês da relação, em pleno período de apostas, de motor e ebulição, ele decidiu que queria aquele sentimento para si; não de modo a dividi-lo posteriormente. Desejava apoderar-se dele, impor-lhe cadeados. Não mais suportava a forma como ela acreditava nos dois, com a carne em tremores, para sempre. Precisava daquela luz para ver-se completamente; algo faltava no espelho - era só uma parte dele que estava. Veio o tempo, mais esforço investido. Eram seis meses de sentimento utilizado só por ela, escassez de possiblidades da estrada para dois; e ele sempre a evitar esse lugar, nunca na intenção de cúmplice - duas paralelas sob o mesmo instante. Ela de tanta luz e caminhos para lá, e ele de tanto interesse invertido e caminhos para si, que não se enxergavam, que não se descobriam. Então outros meses vieram, e toda reserva de amor que ela possuía foi gasta, esvaziou, balão furado, fim da linha. Como então seguir por dois sem uma medida larga de acreditar? E foi no dia escolhido por ela para sugerir mais estrada e mais amor para os dois, que ele não quis mais ouvir, e contra a parede exigiu dela o tesouro guardado, todo o sentimento, as chaves de ser feliz, mas ela não soube transferir como ele desejava, talvez estivesse na alma, um acreditar de dentro. Ele roubaria aquele amor para negociá-lo, para degustar sob sua escuridão, até que se fizesse luz. Tomou nas mãos a faca com a qual procurou bruscamente o tesouro, no peito, com loucura, onde ela guardava as últimas batidas daquela crença de ser. Tudo profundamente indo, lâmina e intenção. E foi tamanho o susto dele ao deparar-se com o desenho da jovem caída sem vida aos seus pés: onde deveria estar o coração havia um buraco; estava vazio...

Ricardo Fabião (Junho - 2010)

Texto para o desafio de Junho - Fábrica de Letras
Tema: Estava vazio...

junho 16, 2010

Ciclo do esquecimento


Ele simplesmente percebeu que era um hamster. Não foi nada que ingeriu, nem mágica ou pesadelo; era mesmo realidade, beliscada, sentida, a mais cruel e assustadora de acontecer, algo de repente, sem a mínima possibilidade de despertar e de não ser mais. Naquela manhã foi isso, um percebimento do tamanho que pode desviar o destino: acordou dentro da gaiola e descobriu-se outro ser, peludo, dentuço, estranho. E não gostou do cheiro que trazia consigo, nem da cor. Conferiu-se pequeno e gordo. E tinha patas que não condiziam com os caminhos desejados. Não apenas isso, achou-se perdidamente estúpido; afinal, o que pode esperar da vida um rato preso? Revoltado, não comeu a ração, não fez a ginástica na rodinha vermelha e tampouco aproximou-se dos novos brinquedos que chegaram naquele dia. Considerou-os alienadores, destituídos de propósitos edificantes. Caminhou pela gaiola, analisando atentamente os detalhes daquela vida de menos, de vitrina, como é possível ser feliz por tão pouco? Divertir-se a roeduras, girar dentro de uma roda estúpida, subir escadinhas, amontoar-se uns sobre os outros como se fossem roupa suja, quero mais disso que sou. Eu sei agora, despertei e vi muito mais. E ele viu que estava só. E soube da tristeza que era não ver, e doeu pelos outros. Por isso impressionou-se com o grau de alheamento daqueles ratos; como podem ser tão limitados, tão previsíveis? Engasgou de tanto limite. Que verbo vem depois de perceber-se? Procurou um lugar próximo à casinha amarela, no segundo piso da gaiola, que era de luxo, ampla, com vários cômodos, mas há fezes por todos os lados, desabafou impaciente. Deitou-se de barriga para cima, e examinou detalhadamente sua estranheza. Um outro hamster vendo-o realizar aquele movimento desconhecido, decidiu imitá-lo; e não demorado, estavam todos eles de barriga para cima, ausentes de razão, satisfeitos, despreocupados, uma cena de ratos. Essa mania de repetição é insuportável, irritou-se nosso protagonista, afastando-se rapidamente dos demais. Depois vieram as horas. Essa sua conflitante descoberta durou muitos dias, tanto assim à descida de si, que ele não pôde dormir como rato que era, nem como outro que desejava ser. Estava na fronteira da aceitação, um estrangeiro. A lucidez, calculava, só ela o conduziria à liberdade; acordado poderia reorganizar o mundo e suas tristes histórias; abrir as gaiolas para mais sol, fazer calar o discurso das rodinhas, redesenhar as narrativas dos pequenos, dos dominados. E quis muito, com excesso e devaneio. Então ele dormiu cansado de querer isso. E os outros ao seu lado, agora acordados, sabiam, ele é muito jovem, pensa que pode interpor desvios à estrada do mundo. Coisa de quem acende, de quem apaga. Logo acordará faminto como um legítimo hamster, e não dispensará uma boa ração. Depois ele deixa de perceber e vive até o fim do pouco que lhe cabe.

Ricardo Fabião (Junho 2010)

Fogo obsessor

                 A velha placa de metal com os dizeres “A mulher que tudo vê e ouve, e que de todas as coisas sabe” estava na parte super...