março 20, 2011

De vermelho o que se fez novembro


Aos que decidem viver suas próprias vidas

        Sofrimento antes era matéria só de imaginar distante; depois é que apareceu a moça do sapato que decidiu tomar a curva para uma dor, e nada mais descansou. No começo de tudo, as histórias de sofrer estavam sempre nas ruas mais distantes da cidade, nas vidas errantes de outros povos; não chegava de palavra experimentada na pele de conhecidos. Para aqueles do cercado, viver era aceitar o ali parado do mundo que não ia. Apenas o silêncio quebrava o limite, e era maior que as distâncias. Então sofrer estava nesse depois das coisas, e ninguém arriscava provar, só calava até assim. 
        Era pensado, portanto, com esse cuidado, o tamanho de existir. E não havia força que permitisse aceitar as coisas viventes do além das cercas. Ali era a única possibilidade do mundo, onde o destino colhia-se com a mão, no formato suportado, tão já maduro e previsível quanto as maçãs em suas temporadas. Não havia novidade que criasse novos sorrisos, nem desvio que gerasse vida além; o que se tinha para sorrir era do sempre com a mesma intensidade, como ele é e repete adiante. Sob este desenho tímido de existir, os desejos dos quatro filhos homens da história eram estreitos, que não arriscavam coisa além da existência medida a palmo. Muito quando havia uma moça era em raro evento, e tudo com pouca chance de ir mais que imaginar. 
        O pai então, aquele do limite, mantinha a família dentro do cercado, com seu coração apertado de amor e zelo, e dizia que vida boa é aquela que se conhece no passo, por isso era feliz com seus dois pés sobre a plantação no tamanho que cabia. E isso era tudo assim até que nasceu Teresa, que pediu um par de sapatos quando percebeu que já era menina no dia de crescer - tudo muito rápido aos de vida parada no limite. E um porco assado com boca assim aberta na mesa do sapateiro foi o pagamento de um par vermelho calçado no andar da mocinha depois, que correu feliz e livre, como nenhum ali antes provara, e isso tomou caminho distante aos que perceberam. 
        Foi um susto para aquela gente criada no limite. Ninguém antes arriscara ser sabendo ali. Ter liberdade? Como trabalhar esse tanto? Depois, com os sapatos sobre a roça ela decidiu imaginar que grandeza era coisa que se encontrava longe, onde a montanha curvava e ia com seu desenho até perder-se de tanto dia para lá. E pensou tanto em crescer que a noite de fugir chegou. E foi na intenção toda e só que ela partiu para completar treze anos em alguma estrada que só ia. Deixou apenas um barulho mudo de sorriso na última cerca, e foi toda para si com o sempre do seu vermelho aceso. 
        Conta-se que muita coisa afundou com isso: um coração de pai lançado de vez ao acaso, coisa sem força de alcançar um olhar adiante; uma mãe que calou no útero o corte da linhagem, com uma dor que cobria a cor de ver as coisas, murchou. E de silêncio, os rapazes, impossibilitados de entender como era um desejar depois do cercado, ensimesmaram-se no que havia. O sol por isso roeu-lhes a pele durante um novembro diferente, que não findou por dentro. Ficou aquele vermelho no alto das coisas, o do sapato, o do destino para depois da encosta, tudo longe da mão, do entendimento. 
        Não houve mais Teresa que lhes indicasse outras ruas; ficou o mundo só ali, no desenho parado de tudo. O pouco que ela disse, os verbos e os adjetivos que usou para significar vida diferente, tornou-se lembrança indevida, coisa proibida dentro do cercado. Puseram, então, uma infinidade de dias sobre tudo isso, e viveram como sabiam. E com o tempo, que insistia alheio aos conflitos e às dores, vieram novas semeaduras e colheitas; tudo plantado para permitir a consumação da continuidade. Ainda assim, calando-se tão forçosamente, era certo que restasse o pensamento.
        Para a manutenção do limite, não mais quiseram saber notícias da mocinha, que arriscou caminho desviado para ser humana sem eles. A vida, por isso, voltou ao tamanho, o sorriso no formato das cercas, as frutas na temporada prevista, tudo assim. E foi muita data que passou; contudo, ainda no último dia de existir, não havia palavra que lhes explicasse a intensidade daquele vermelho - tão novembro, tão para sempre.

Ricardo Fabião (Março - 2011)

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