Aos que decidem viver suas próprias vidas
Diz-se que, naquele lugar, vivia-se segundo os fundamentos da conservação, atendendo-se cegamente à ideia de um "viver sem entender para nunca ter de mudar". Dessa forma, cabia no tempo aceitar a existência como ela é, respeitá-la, fazendo disso o propósito de viver. Então sofrer era história que se imaginava distante; estava nos recantos remotos da cidade, nas vidas errantes de outros povos; não se materializava como coisa experimentada na pele de conhecidos. Para aqueles do cercado, viver era aceitar o ali parado do mundo que não ia. Apenas o silêncio quebrava o limite, e era maior que as distâncias. Sofrimento, portanto, estava nesse depois das coisas, e ninguém arriscava provar, por causar barulho, por provocar palavras. Contudo, depois, apareceu ali a mocinha do sapato, que tomou a curva para uma dor, e nada mais descansou.
Assim, era mantido, com esse cuidado, o tamanho de existir. E não havia força que permitisse aceitar as coisas viventes do além das cercas. Aquele lugar era a única possibilidade do mundo, onde o destino colhia-se com a mão, no formato suportado, tão já esperado e previsível quanto as frutas em suas temporadas. Não havia novidade que criasse novos sorrisos, nem desvio que gerasse vida além; o que se tinha para sorrir vinha do sempre, com a mesma intensidade, como ele é e se repete adiante. Sob esse desenho tímido de existir, os desejos dos quatro filhos homens da história eram estreitos, que não arriscavam coisa além da existência medida a palmo. Muito quando havia uma moça para o deleite dos olhos era em raro evento, e tudo ocorria sem chance de ir mais que imaginar.
O pai, então, o grande defensor do limite, repetidor obstinado das coisas como as coisas devem ser, mantinha a família dentro do cercado, com seu coração apertado de amor e zelo, a defender que vida boa é aquela que se conhece no passo, por isso era feliz com seus dois pés sobre a plantação, no tamanho em que sabia existir. E isso era tudo assim até que nasceu Teresa, que pediu um par de sapatos quando percebeu que já era menina no tempo de crescer - tudo muito rápido aos de vida parada no cercado. E não demorou para que um porco assado com boca assim aberta na mesa do sapateiro fosse o pagamento por um par vermelho, calçado no andar da mocinha depois, que correu feliz e livre, como nenhum ali antes provara. É certo que tal fato riscou um caminho distante aos que perceberam.
Foi um susto para aquelas pessoas criadas no limite. Ninguém antes arriscara ser sabendo ali. Ter liberdade? Como trabalhar esse tanto? Como traçar um plano ajustado entre as possibilidades de se pensar e as de se viver? Que tamanho assume o pensamento dentro de uma alma? Eles fariam tais perguntas se soubessem. Não fizeram. Mas elas estavam lá, gritadas silenciosamente, sem possibilidades de suscitar respostas corretas, materializadas no impasse, incomodando aquela gente. Porque sendo sapato, porque sendo menina, porque sendo vermelho, porque sendo cercado, porque sendo um mundo parado, porque estando tudo sob impositivo silêncio, não havia como contestar, como saber, compreender, experimentar a vida plenamente. Não havia confronto porque não havia discórdia - não havia desvios.
Depois, com os sapatos sobre a roça, a jovem decidiu imaginar que grandeza era coisa que se encontrava longe, onde a montanha curvava e ia com seu desenho até perder-se de tanto dia para lá. E sabendo questionar como fazia, e buscando ser feliz como vivia, passou a evitar os olhares que pareciam perguntas e os silêncios que valiam como ofensas. E pensou tanto em crescer que a noite de abandonar o cercado chegou. E foi na intenção toda e só que ela partiu para completar treze anos em alguma estrada que só ia. Deixou apenas um barulho mudo de sorriso na última cerca, e rumou inteira, dentro da noite, para si e para o desconhecido, com o sempre do seu vermelho aceso.
Conta-se, ainda que se evite, que muita alegria afundou com isso: um coração de pai lançado de vez ao alheiamento, coisa que perdeu a força de unir respiração e vida; uma mãe que calou no útero o corte da linhagem, com uma dor que cobria a cor de ver as coisas, murchou. E de silêncio, os rapazes, impossibilitados de entender como era um desejar depois do cercado, ensimesmaram-se. O sol por isso roeu-lhes a pele durante um novembro diferente, que não findou por dentro, na alma. Ficou aquele vermelho no alto das coisas, o do sapato, o do destino para depois da encosta, tudo longe da mão, do entendimento.
Enfim, não houve mais Teresa que lhes indicasse outras ruas; ficou o mundo só ali, no desenho inerte da previsibilidade. O pouco que ela disse, os verbos e os adjetivos que usou para significar vida diferente, tornou-se lembrança indevida, coisa proibida dentro dos quatro limites. Puseram, então, uma infinidade de dias sobre tudo isso, e viveram como sabiam. E com o tempo, que insistia alheio aos conflitos e às dores, vieram novas semeaduras e colheitas; tudo plantado para permitir a consumação da continuidade. Ainda assim, calando-se tão forçosamente, era certo que restasse o pensamento.
Para a manutenção do cercado, por fim, não mais quiseram receber notícias da mocinha, que arriscou caminho desviado para ser humana sem eles. A vida, por essa razão, voltou ao tamanho, o sorriso ao formato das cercas, as frutas às temporadas previstas, tudo assim. E foi muita data que passou; contudo, ainda no último dia de existir, não havia palavra que lhes explicasse a intensidade daquele vermelho - tão novembro, tão diferente, tão para sempre.
Ricardo Fabião (Março - 2011)
É, amigo, vida que segue. Mas sempre há de ficar uma filigrana de saudade naqueles que realmente são privilegiados com a 'arte' do gostar.
ResponderExcluirAndei um pouco afastado em virtude do verão, mas estou voltando e já contemplando sua obra.
Obs. notei problema em seu blog algum tempo atrás. Bom que já está tudo resolvido.
Um abraço.
Finalmente 2011 chegou por aqui! Muito bom Ricardo, abraços camaradas, camaradas!
ResponderExcluirViajei no limite e além dele, desse texto...
ResponderExcluirAlgo assim, como o avesso de Ana Terra.
Que bela escrita essa de vermelho, como a vontade de ir além, que na verdade é ir muito dentro, nos confins inimagináveis de nós mesmos...Agradecida! Um Beijo
ResponderExcluir