Para Wilson, meu pai.
Ele pensou que havia escolhido o melhor lugar da sala, mas sentou-se justamente onde o olho do seu oponente buscava foco. Desse modo, não houve como evitar o choque entre aqueles caminhos interditados, entre os olhares que não se sabiam ver. Os dois traziam consigo a marca da solidão, o impedimento de ser, por isso não havia palavra ou instante que os ligasse. Ficariam a remoer seus silêncios até que alguém os resgatasse dali.
O mais velho havia testemunhado um mundo de homens silenciosos, de pouco trato com os sentimentos, e, tinha certeza, não morreria de outra causa; essa voz desenhada para dentro daria, dentro de pouco tempo, o último nó em sua respiração. Com as mulheres da família ele ainda soubera resmungar umas ordens e reclamações. Com os homens, no entanto, ocorrera só o olhar partido ao meio: um olho que via, o outro que desviava para não dar no sentimento.
O rapaz, como já lhe sabemos a solidão, teve de espelho um mundo semelhante. Tanto silêncio aprendeu que passou a ter receio das palavras. Era como se elas fossem artigos muito preciosos, e ele não tivesse permissão para manuseá-las. Tinha medo de quebrá-las em pedaços, de repassá-las de modo equivocado àqueles que delas precisassem. E não haveria como reparar os estragos. Preferiu, então, a companhia dos animais do cercado, já que ali seus grunhidos e sussurros eram facilmente decifrados, e poderia exercitar livremente o seu silêncio, sem aquela sensação de queda e de vazio.
Depois, quando sentados à mesa para o almoço, os meios olhares daqueles desconhecidos repetiram-se, e os silêncios mais incomodaram. Desceram com a comida; mas não totalmente. Uma parte ficou à boca; à espera de uma frase ousada, escapada dos ímpetos, mas nem isso teve força naquela tarde.
Essa impossibilidade da palavra levava-os a tentar os pensamentos. Certamente lá dentro haveria abrigo e sossego. Puro engano: ali eles continuavam como crianças. E crianças costumam indagar o porquê das coisas; por isso a pergunta sobre o ofício do silêncio não calava. Coçavam os olhos, ajeitavam a gola da camisa, como se assim o incômodo pudesse descer e ser esquecido, mas não passava, e levava consigo a tarde inteira.
Como se não bastasse o engasgo desse caminho que não ia, o mais velho estava especialmente irritado por ficar tantas horas longe de casa. Necessitava do seu lugar; de ruminar seus silêncios; ficava de transformá-los em velhos conhecidos. Era como rumava com suas manhãs adiante. Assim não demorou a implorar que levassem-no de volta. Na saída, sua esposa pediu a ele que fosse falar com o filho.
Ele aproximou-se do rapaz, estendendo-lhe a mão. Naquele simples gesto iam todas as palavras não mencionadas; todos os sentimentos evitados, o medo de ser homem e de ser por isso sozinho, a estupidez, a ignorância, todos os pedidos de perdão, e aquele quase olhar, superficial lá fora, mas profundo por dentro, de quem não possui as medidas adequadas, mas sabe amar alheiamente. O rapaz devolveu o gesto de mesmo silêncio, de mesma dor e quase olhar, e não soube ser mais que isso. Selaram com esse instante o respeito aos próprios limites, cientes de que entendiam-se sem palavras e justificativas. Uma ponte sobre vazios.
Depois ficou o sol a deitar seu último horário sobre o relevo da tarde. Maior que isso, porém, era aquele insustentável nó que eles traziam consigo desde a infância. E essa era a única estrada que eles sabiam.
Ricardo Fabião (maio 2010)
Texto para o desafio de Junho - Fábrica de Letras
Tema: "Estava vazio..."