Ela acordou com duas dúvidas naquela manhã: é conveniente fazer bolinhos de chuva em um dia especialmente quente? Fica bem convidá-lo a entrar para saborear os bolinhos sentado no meu sofá? Pensando bem, talvez não seja bom para o mundo uma mulher solteira, com mais de quarenta, e um carteiro, com quase vinte, ambos dentro da mesma vontade de acontecer. Tinha que considerar a pouca aceitação desse fato, afinal, o futuro, onde tudo tem permissão de ser, está ainda para lá do século seguinte. O presente, sim, é de um prolongamento inteiro, e fica ao redor dizendo ‘seja assim’.
Ela mesma já havia encurtado muito olhar nos caminhos de ser gente; esquecera-se de ser plena. Passou então a ser feliz pelos outros, de empréstimo, contentando-se quando alguém conseguia uma felicidade de acaso. Mas aí apareceu o carteiro com uma medida diferente de ver, e ela pensou que poderia pôr o passo nisso. Paixão aos quarenta, uma possibilidade.
As outras coisas do seu dia eram arrumar a sala para esse talvez e contar os minutos até que se transformassem na hora das cartas. Logo, ele chegaria com sua natureza intermitente, aqui e ali, numa casa, noutra, a distribuir pedaços de outros lugares em envelopes. Era um mensageiro. E ela tanto o viu assim, com chances de um novo mundo, que tratou de redesenhar as regras de acreditar. Naquela tarde, quando ele gritasse ‘carteiro’, ela abriria o portão com o sorriso que confessaria o resto das coisas: ‘apaixonei-me’.
Assim que se fez o momento esperado, ela arrumou os bolinhos, delineou o batom, conferiu a sala e o sofá, correu, já vou, mas esqueceu de pôr a malícia certa no sorriso ensaiado, aquele que diria ‘eu quero’. Tão sem controle de si e disso que parou diante dele. Ficou só o olhar e o medo de tudo.
Sendo assim, vendo-a no impasse de sempre, ele pensou que era só uma tarde como as outras, de muito limite acorrentado ao portão. Tomou, pois, o bolinho nas mãos, despediu-se dela, e dirigiu-se à residência ao lado: ‘carteiro’, e logo uma mão puxou-o bruscamente para dentro; e assim tão rapidamente que a vizinhança não percebeu. Só ela.
Sendo assim, vendo-a no impasse de sempre, ele pensou que era só uma tarde como as outras, de muito limite acorrentado ao portão. Tomou, pois, o bolinho nas mãos, despediu-se dela, e dirigiu-se à residência ao lado: ‘carteiro’, e logo uma mão puxou-o bruscamente para dentro; e assim tão rapidamente que a vizinhança não percebeu. Só ela.
À noite, quis saber as armas utilizadas pela vizinha. Que receita você usou? Não há segredo, querida. Quando a paixão estiver à porta, passe primeiro as chaves no mundo; esqueça os conceitos, as normas, você mesma... em seguida, vá lá ver o que dá.
Vieram outras paixões. Ela nunca encontrou as chaves.
Ricardo Fabião (Abril - 2010)
Desafio para o tema de Maio - Fábrica de Letras
Tema: Paixão
Olá Ricardo, gostei muito deste pequeno conto.
ResponderExcluirConsigo bem perceber as inseguranças desta mulher. Muito bem escrito.
Beijinho
E agora, na época do e-mail, já não há hipótese de encantar um carteiro.
ResponderExcluirFalando a sério: gosto muito da forma como escreve. Terrível, o sentimento de culpa e perda que se seguiu, até ao fim dos seus tempos.
Que fim bonito e triste. Ela hesitou, outra agarrou.
ResponderExcluirbjs*
Fico feliz em vê-las por... grandes escritoras! E só conseguem comentar nesse nível porque são também leitoras atentas.
ResponderExcluirNão acredito na possibilidade da percepção de um grande texto se antes não tiver enfrentado um grande leitor.
Voltem sempre.
Beijos.
Ricardo.
Esse texto aborda uma quebra de paradigma social, Ricardo, que, para certas pessoas é quase que impossível. Muita das vezes é dificílimo quebrar os grilhões impostos pelo olhar crítico e demagogo dos que se acham o poço da moralidade.
ResponderExcluirBelo trabalho!
Um abraço.
Isso, Jairo...
ResponderExcluire às vezes as grades do coletivo estão tão bem 'ajustadas' ao nosso modo de agir e de enxergar o mundo, que deixamos de viver nossas próprias vidas e passamos a reproduzir um discurso que ecoa em nosso meio.
Lamentável, mas real.
Abraço.
Ricardo.
Adorei a forma fluída e cuidada da sua escrita.
ResponderExcluirAdorei o conteúdo da história e a mensagem princialmente.
Muitas paixões ainda hoje são abafadas pela dúvida, pela insegurança e principalmente pelo preconceito da nossa sociedade. Tudo tem de partir da nossa vontade para vencer os obstáculos.
bjs
Gostei, gostei demais.
ResponderExcluirAndo lá a ler os poemas e textos da Fábrica.
O teu foi o que me conquistou, dentre tantos.
Simples e complicado como passar as chaves no mundo.
Beijo grande
Fabião,
ResponderExcluiragradeço a presença boa no Equador das coisas.
Que façamos uma boa amizade entre versos e prosas.
Continuemos...
Uma visita, conduz a outra e em boa hora a fiz!
ResponderExcluirAchei de uma "beleza" enorme este seu texto...
As horas de amor ou de paixão não se podem desperdiçar
Maria Tereza,
ResponderExcluirtua visita assim tão cedo comprova a generodidade
com que trabalhas neste mundo de arte e poesia.
Isso é respeitar a própria essência.
Aqui terás espaço para uma boa conversa
sobre a vida e suas possibilidades.
Abraço.
Ricardo.
Germano...
ResponderExcluirEstou feliz por me visitares.
Aceito o teu convite.
Vamos diminuir o oco que há neste mundo virtual.
Abraço.
Ricardo.
Muito boa esta estória. O mundo tá cheio de oportunidades perdidas.
ResponderExcluirHá muito que esses "bolinhos" vêm atrapalhando o sentido urgente das paixões. Se não houver iniciativa, a coisa fica difícil.
ResponderExcluirAgradeço a visita, El Matador.
Abraço.
Ricardo.
Que dó ver escolher seu 'casulo', seu 'ritual' diário, e não ter tido a coragem de OUSAR, EXPERIMENTAR O DESCONHECIDO, NOVO, DIFERENTE!Acontece quando não se está pronto para enfrentar obstáculos.
ResponderExcluirCom amor e carinho,
Silvia
Tão singelo e intenso seu espaço, parabéns por proporcionar um blog tão verdadeiro.
ResponderExcluirSigos teus passos, poeta!
Muito bom, Ricardo! Adorei tua forma de enfatizar a urgência da paixão. Parabéns pela originalidade!
ResponderExcluirAbraço,
Ane
Há duas coisas que não voltam atrás, a palavra dita e a oportunidade perdida. Muito bonito este seu texto. Singelo, mas muito intenso e apaixonante. Gostei muito de ter passado por aqui... acho que vou ficar.
ResponderExcluirBeijinho :)
Super mini-conto!
ResponderExcluirAcho que eu tambem perdi as chaves que abrem as portas do mundo!
O futuro , eh o lugar , realemnte onde tu tem a oportunidade de ser, ou nao! Eh la onde encontramos os alivios do nosso poresente, embora haja uma contradicao nisso!
Andressa Fabiao
Mais uma que aprontou-se, aguardou e no último momento perdeu o trem. Nos trilhos da vida ou você corre atrás e apanha o trem ou é atropelada por ele.
ResponderExcluirBelo blog. Adorei seus textos. Passarei sempre por aqui.
Abraços,,,