maio 31, 2010

Ponte sobre vazios


Para Wilson, meu pai.         

          Ele pensou que havia escolhido o melhor lugar da sala, mas sentou-se justamente onde o olho do seu oponente buscava foco. Desse modo, não houve como evitar o choque entre aqueles caminhos interditados, entre os olhares que não se sabiam ver. Os dois traziam consigo a marca da solidão, o impedimento de ser, por isso não havia palavra ou instante que os ligasse. Ficariam a remoer seus silêncios até que alguém os resgatasse dali.
       O mais velho havia testemunhado um mundo de homens silenciosos, de pouco trato com os sentimentos, e, tinha certeza, não morreria de outra causa; essa voz desenhada para dentro daria, dentro de pouco tempo, o último nó em sua respiração. Com as mulheres da família ele ainda soubera resmungar umas ordens e reclamações. Com os homens, no entanto, ocorrera só o olhar partido ao meio: um olho que via, o outro que desviava para não dar no sentimento.
       O rapaz, como já lhe sabemos a solidão, teve de espelho um mundo semelhante. Tanto silêncio aprendeu que passou a ter receio das palavras. Era como se elas fossem  artigos muito preciosos, e ele não tivesse permissão para manuseá-las. Tinha medo de quebrá-las em pedaços, de repassá-las de modo equivocado àqueles que delas precisassem. E não haveria como reparar os estragos. Preferiu, então, a companhia dos animais do cercado, já que ali seus grunhidos e sussurros eram facilmente decifrados, e poderia exercitar livremente o seu silêncio, sem aquela sensação de queda e de vazio.
      Depois, quando sentados à mesa para o almoço, os meios olhares daqueles desconhecidos repetiram-se, e os silêncios mais incomodaram. Desceram com a comida; mas não totalmente. Uma parte ficou à boca; à espera de uma frase ousada, escapada dos ímpetos, mas nem isso teve força naquela tarde.
      Essa impossibilidade da palavra levava-os a tentar os pensamentos. Certamente lá dentro haveria abrigo e sossego. Puro engano: ali eles continuavam como crianças. E crianças costumam indagar o porquê das coisas; por isso a pergunta sobre o ofício do silêncio não calava. Coçavam os olhos, ajeitavam a gola da camisa, como se assim o incômodo pudesse descer e ser esquecido, mas não passava, e levava consigo a tarde inteira.
      Como se não bastasse o engasgo desse caminho que não ia, o mais velho estava especialmente irritado por ficar tantas horas longe de casa. Necessitava do seu lugar; de ruminar seus silêncios; ficava de transformá-los em velhos conhecidos. Era como rumava com suas manhãs adiante. Assim não demorou a implorar que levassem-no de volta. Na saída, sua esposa pediu a ele que fosse falar com o filho.
      Ele aproximou-se do rapaz, estendendo-lhe a mão. Naquele simples gesto iam todas as palavras não mencionadas; todos os sentimentos evitados, o medo de ser homem e de ser por isso sozinho, a estupidez, a ignorância, todos os pedidos de perdão, e aquele quase olhar, superficial lá fora, mas profundo por dentro, de quem não possui as medidas adequadas, mas sabe amar alheiamente. O rapaz devolveu o gesto de mesmo silêncio, de mesma dor e quase olhar, e não soube ser mais que isso. Selaram com esse instante o respeito aos próprios limites, cientes de que entendiam-se sem palavras e justificativas. Uma ponte sobre vazios.
      Depois ficou o sol a deitar seu último horário sobre o relevo da tarde. Maior que isso, porém, era aquele insustentável nó que eles traziam consigo desde a infância. E essa era a única estrada que eles sabiam.

Ricardo Fabião (maio 2010)

Texto para o desafio de Junho - Fábrica de Letras
Tema: "Estava vazio..."

27 comentários:

  1. Perfeita a sua forma de nos traduzir os conflitos enraizados na vida humana. Em seu texto, o gosto amargo do silêncio caracteriza as nossas limitações quando a necessidade é de gerenciar a si próprio.
    Um abraço!

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  2. E há tantos outros desconhecidos em outras mesas de jantar...

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  3. Gostei da forma desempoeirada como falas de uma cena triste e gostei da dedicatória. De tão simples, imagino um homem mais velho, talvez mais enrugado, mais grisalho, a ter estes gestos de conforto para um jovem com pouca capacidade para compreender as agruras da vida!

    Muito bom!

    Abraço

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  4. Esse silêncio me remeteu à 'Vidas Secas' de Graciliano Ramos...esse silêncio que grita e tanto diz sem dizer, ensurdecedor...Belo texto!

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  5. Muito bom, meu caro! Gostei deveras! Narrativa interessante e cativante. Para se ler, como li, de um fôlego, devido à ânsia do querer.
    Gramde abraço,

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  6. Existem pessoas caladas em que as palavras custam a sair, vem de longe essa dificuldade de expressão.
    Não falar... ficar com os sentimentos engasgados encomodou-me, neste belissimo texto.
    Seria como uma mordaça que me iria asfixiar o meu estado natural de estar na vida.

    Os gestos podem ser pontes de afecto e são decerteza, mas as palavras, ai as palavras!

    Beijos

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  7. Caros poetas...
    Jairo, Fred, MR Pereira, Keila, Rodrigo e MZ,
    desculpem-me por utilizar um dizer apenas para
    agradecer-lhes a visita e as palavras, mas o que
    vai aqui é de semelhante estima a todos.
    Deixa-me muito feliz essa interação entre os produtores
    de textos, os poetas, os artistas.
    De certo modo, somos uma 'Arcádia virtual'.
    Temos a arte, a possibilidade e a coragem.

    Beijos;
    abraços.

    Ricardo

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  8. Degustamos silêncios diariamente... Silêncios doces, amargos, insossos.

    Lindo texto, Ricardo!

    Beijos,
    Ane

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  9. Tantas vezes passamos por esse silencio, que esquecemos que a gritar nos conhecemos. Belo texto

    Obrigado pelo comentário no meu blog ;)
    Abraço,
    Gabriel Má-Vida

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  10. Palavras para quê? Por vezes não dizem nada...
    Muito bom este teu texto.

    Abraço

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  11. Como o silêncio pode ser duro, castrador e gerar vazios. Há silêncios tácitos só para não se dar razão a quem a tem.

    Gostei do seu texto tão reflexivo.

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  12. Ane, Gabriel, Catsone e Natália...
    A todos agradeço as palavras de incentivo e de reconhecimento ao escrito.
    Aos três últimos, que sejam bem-vindos a estas curvas.

    Abraços,
    Beijos.

    Ricardo.

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  13. MARAVILHOSO SEU TEXTO!!!!

    DEIXA O SENTIMENTO EMBARGADO, EM ESTADO DE PROSTRAÇÃO...

    SUA PROSA É CONTUNDENTE, CARREGADA DE SIGNOS EMBLEMÁTICOS... A PALAVRA EM SEU SONAMBULISMO ETÉREO, PORÉM DE UM LIRISMO DELICADO E BASTANTE ENCANTADOR...

    FIQUEI EMOCIONADA COM SEU TEXTO...

    PARABÉNS!!!

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  14. Este texto reportou-me igualmente ao meu pai. Homem de poucas falas, educado a reprimir emoções e não manifestar os sentimentos. Ainda hoje, em determinadas alturas, falamos por silêncios, principalmente quando alguém educado assim, não consegue expressar por palavras o que lhe vai na alma, mas o olhar, esse, não engana e não há silêncio que o consiga trair. Adorei o teu texto. Cada palavra, cada memória, cada sentir. Bonita dedicatória, que em segredo também dediquei a alguém muito especial para mim.

    Um beijo

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  15. Como fazer qualquer tipo de comentário diante de tantos tão bem escritos. Cheguei por aqui agora e adorei o que li. Simples, sensível. O texto é mais que a descrição de uma cena: tem o cheiro do local, das pessoas. Tem o sentimento triste do silêncio. Tem a presença da vida que nos cerca. Parabéns. Um abraço

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  16. Você é FANTASTICO ...

    O pessoal já disse tudo o que é verdade, você tem uma descrição incrivel, o jeito que usa as palavras podemos sentir toque por toque!!!

    Sem mais,

    Rs,
    beijao!

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  17. Olha, para quê repetir, escreves muito, muito bem, com o sentimento contido em cada curva da palavra. O silêncio tem um peso terrível, asfixiante. Adorei o texto.
    Bjs

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  18. Chegando de mansinho pra conhecer teu espaço, pé ante pé, silêncio, vou ficando e curtindo.

    Beijo,

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  19. Lou, Helga e Leio...
    a descrição da cena é um pouco do que eu vivi.
    Não há culpados na história; eu mesmo aprendi
    alguns desenhos do tal silêncio.
    Há somente vítimas,
    e o tempo com sua borracha.

    Beijos;
    abraços.
    Ricardo

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  20. Luiz, Teresa e Renata...
    aos dois primeiros, agradecer
    as palavras e o retorno a este espaço.

    À Renata, que seja bem-vinda,
    e que volte pé ante pé para mais palavras,
    mais silêncios.

    Beijos;
    abralos.
    Ricardo.

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  21. Excelente.

    Tens de escrever um livro. Ou mais....

    Lerei todos.

    Beijinho*

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  22. Ricardo:
    Quando alguém que escreve e mostra assim as suas emoções, comenta num simples post meu, só tenho que ficar elogiada e comovida.
    O silêncio, as palavras não ditas, pesam às vezes muito mais do que a força das palavras e dos actos.
    Mas ter o dom, de passados tantos anos partilhá-lo deste modo, lava a lama, lava tudo!
    Parabéns!
    Um beijinho

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  23. Na educação dos filhos, meu pai, principalmente meu pai bastava dar-nos um olhar, e era o suficiente.

    Olhar de aviso...
    Olhar de reprovação...
    Olhar de interrogação...
    Olhar de riso....
    Olhar de carinho...
    Olhar de amor...
    Tantos outros olhares!
    É que os olhares têm tantas palavras lá dentro... que se saltassem todas para fora não haveria como descrevê-las ou escrevê-las.

    Adoro ler-te Ricardo.
    bjs

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  24. D.R., Fê e Mary Jo,

    há muito de mim e de meu pai no conto.
    Eu ainda consegui arranjar caminhos por
    meio da escrita. Ele, no entanto, guardou
    vários silêncios, e os levou, certamente,
    consigo para o outro lado.
    O que nos resgatou a tempo foi o olhar,
    isso nós sabíamos onde chegava: muito longe.

    Feliz pela visita, feliz pelas palavras
    recebidas.

    Beijos.
    Ricardo

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  25. É sempre tão bom ler um texto e saber que há muito mais por trás das palavras, muitos sentimentos que nem sempre conseguimos detectar e nos seus textos isso acontece. Um pouco de sabedoria, tristeza, calma, etc. E é por vezes no silêncio em que, de facto se aprende mais e se ensina também. O silêncio de pai consegue ser bastante reconfortante e cheio de repreensão e sabedoria ao mesmo tempo.
    Um beijo, Maria

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  26. Está muito bom... gostei da narrativa.
    O silêncio pode ser realmente angustiante e criar abismos.


    *

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  27. Muitas vezes há coisas que não precisam ser ditas. É como se corressem soltas no ar, mesmo quando não pronunciadas. Talvez por simples gesto ou olhar.

    Ótima participação. Um texto leve que me faz navegar por momentos semelhantes vividos.

    .

    Quanto ao comentário no meu blog – Obrigado pelas palavras. Comentários como os seus inspiram continuar.

    Vamos continuar tentando e alertando as pessoas. Esperamos, quem sabe, fazer um mundo um pouco melhor.

    Abraços

    Sena do Aragão

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