Ela tratou, primeiro, de ir buscar sua vida por
baixo da textura do dia, pois para cantar não lhe bastavam cordas vocais e
respiração; necessitava, sobretudo, de algo que viesse colocar-se como fundo do
olhar, para que de fato houvesse música e sentimento. Nunca cantava só a
palavra; varria o mundo de dentro para interpretar o sentido de viver; algo que
ateasse fogo na voz, um jorro de sensações, a paixão de ser por isso.
Contudo, nem sempre
se pode filtrar o que é puxado de uma escuridão, sobretudo, quando se trata da
própria alma. E nisso vieram alguns sentimentos calados até o lá fora da noite;
algumas dezenas de verdades ditas em avesso, outros terríveis enganos,
abafados, e aquela saudade, a pior de todas: a saudade de não ter sido.
Ao cantar, percebeu
que só iria adiante se antes retornasse e curasse aquele machucado de vida
deixado para trás, um caminho quebrado. E sob os cálculos dessa impossibilidade,
mais silêncio caiu sobre tudo.
Ela sabia. Não havia
música lá fora que chegasse tão dentro para um alívio; precisaria de todas as
canções, milhões delas, e que juntas suplicassem todas as chances e
retornos, e que ficassem tomando o chão da madrugada, de muitas. E ainda que
houvesse essa ajuda, não havia garantias de que conseguiria colar no ponto
certo a vida que se partira profundamente. Foi o que interpretou naquele tango
e tremor: o remorso de ter-se ausentado de si mesma, de ter negligenciado tão
sagrada paixão.
A música terminou e
ela era mais uma vez sozinha e lá fora; e todo aquele sentimento visitado
voltou para o lugar de dentro, camuflado. Estava instituído: no ponto em que se
mantinha aquela saudade nada a resgataria. Por mais que ela insistisse em seus
retornos, jamais saberia a porta certa de abrir, o jeito assim de rever.
Permaneceria, pois, aquela
dor calada, uma porção vazia, servindo de chão para o pouco dela que seguia
naquele tanto que voltava.
Ricardo Fabião (maio - 2010)
Texto para o desafio de maio - Fábrica de Letras
Tema: paixão
____________________________
A intenção primeira era fazer uma homenagem a Carlos Gardel, um dos autores da canção interpretada abaixo. A personagem original do conto era um cantor de tangos, mas apareceu Penelope Cruz, suscitando um fundo diferente ao que eu havia projetado. O vídeo faz parte do filme "Volver", de Pedro Almodóvar, cineasta espanhol.
Encontrei em tais palavras as mais belas curvas. O filme é maravilhoso! E o conto... também!!! :D
ResponderExcluirDesta excelente prosa poética, destaco: "A música terminou e ela era mais uma vez sozinha e lá fora; e todo aquele sentimento visitado voltou para o lugar de dentro, camuflado."
Beijo,
Ane
Caro Ricardo,
ResponderExcluirÉ com lisonja que agradeço pela sua visita e pelas suas palavras. Parabenizo-o por esse espaço que sei que visitarei com freqüência. Li, não só os posts recomendados, como também muitos outros. Parabéns e vida longa ao Curvas da Palavra!
Ane e Fred,
ResponderExcluircaros poetas de mundo vizinho...
essa sintonia que nos une - a palavra
e seus desenhos - só é possível graças
a nossa sensibilide.
Abraços, beijos.
Ricardo.
(Fred, quanto às palavras deixadas em seu espaço, vocês as merece, cada uma, e muito mais)
Oieeee, Oieee e Oii!!!!!
ResponderExcluirPow que saudade,
Peço mil desculpas pela ausencia da internet.
mas nunca o esqueci viu!
Por conta de trabalho, rotinas novas, to meio sumido!
Mas estou aqui, de volta viu!
Aparece, Beijão!
ahhh gardel....amooooooooo
ResponderExcluirRicardo,
ResponderExcluirEscreve como quem canta. Realmente a música está muito presente em seus textos. Estarei sempre por aqui.
Abraço.
Luiz, Claire e Sérgio...
ResponderExcluirtrês poetas, três estradas distintas, mas com a mesma luz a guiá-las: a palavra. Fico feliz em tê-los aqui, construindo comigo outras curvas e possibilidades.
Abraços,
beijos.
Ricardo.
Belo blog e belíssima postagem. Gostei da maneira apaixonada com que escreve.
ResponderExcluirFaço-me um seguidor.
Abraços.
F.M.
Flávio,
ResponderExcluiragradeço a você comentários tão inspiradores; aproveito para lhe dizer que fico feliz em recebê-lo aqui, e mais ainda em saber que estás entre os que põem olhares sobre as curvas da palavra.
Seja bem-vindo!
Abraço.
Ricardo.
Perdi-me nesssas palavras, por momentos me imaginei sendo ela... bjs
ResponderExcluir"Hoje, alguém pôs a rodar um disco de Gardel num apartamento junto ao meu... que tristeza me deu".
ResponderExcluirRicardo, um conto sensível. Apesar da sensualidade do tango, a tristeza do desencontro tomou conto da história.
Bravooooo!
Poetic Girl e Jairo...
ResponderExcluirde um modo ou de outro os textos sempre guardam algo para nós, seja sobre nós mesmos, seja sobre o mundo que nos cerca.
Bom tê-los aqui.
Beijos, abraços.
Ricardo.
Fabuloso texto, tão intenso como a paixão que ela carrega. Adorei as emoções que exalam destas palavras, das melodias com que a minha mente se deliciou.
ResponderExcluirBeijinhos Doces, Ava.
As paixões tÊm se ser vividas de alma e coração no momento certo, caso contrário fica sempre a frustação de se ter uma oportunidade desperdiçada.
ResponderExcluirNão tem retorno
bjs
Ava e Doméstica...
ResponderExcluirfico feliz em recebê-las aqui, onde as palavras fazem a curva; aumentando com vosso olhar a pluralidade de sentidos e caminhos contidos nos textos.
Sejam bem-vindas.
Beijos.
Ricardo Fabião.
Ricardo: Parabéns! Está linda sua nova Casa.
ResponderExcluirCambia lo superficial
cambia también lo profundo
cambia el modo de pensar
cambia todo en este mundo
Cambia el clima con los años
cambia el pastor su rebaño
y así como todo cambia
que yo cambie no es extraño
Cambia el mas fino brillante
de mano en mano su brillo
cambia el nido el pajarillo
cambia el sentir un amante
Cambia el rumbo el caminante
aunque esto le cause daño
y así como todo cambia
que yo cambie no extraño
Cambia todo cambia
Cambia todo cambia
Cambia todo cambia
Cambia todo cambia
Com amor e carinho,
Sílvia
PS.: Lá na minha Casa há uma nova postagem esperando sua leitura!
http://silminhacolchaderetalhos.blogspot.com/