Para Oscar Wilde,
que não pôde usufruir, plenamente, uma diferença inteira.
Naquele
instante desconectado, entre danças sem música e palavras sem som, ele era
apenas o menino que não sabia protagonizar uma história de menino como um deve
ser. Faltava-lhe o código. Cansava então disso sozinho, dentro do ar pesado,
parado, com sua bola de pensamento mudo a mover-se lentamente sob o queimar da
tarde. O pouco barulho do seu passo era de não acordar o mundo como ele é, nem
de permitir a imaginação como ela voa, porque imaginar é ter muito tamanho
fora, ficar grande demais, solto no susto que há em viver. Restava-lhe então
calar e pôr disfarces sobre a transparência dos seus desejos. Assim,
experimentando solidões, percebeu muito cedo a diferença, que era uma força
ainda no grão. E assustou-se.
A
partir desse incômodo, pôde finalmente constatar: ser menino é de um cuidado
tão assim que só o medo de não ser na medida certa traduz a dimensão. O mundo
dita o formato de sê-lo, e não sabê-lo ao certo é menos viver. Mas o menino do
pensamento mudo não acatava de tanto quase; ouvia as regras e cansava disso,
dentro da tarde suspensa, oca de tanto descaminho. Como me encaixo nas coisas?
Que tipo de amor carrega um diferente? Enquanto não respondia a isso, chegava a
noite, e ter apenas onze anos é de um medo já no começo de gente, um sendo que
avança mais fundo com o tempo, e esse afundar é muito escuro quando não há
chão. Corria então para o quarto, com o coração fora das horas, desejando
encontrar-se consigo. Lamentavelmente, ali o silêncio logo ampliaria a sensação
da diferença – algo que só cresceria para muito distante do seu entendimento. Punha-se
à frente do espelho, despido, vencendo as máscaras da matéria até enxergar-se completamente,
mas lá, muito dentro, morava uma voz que não era a sua, e era. Acenava em vão,
e não se reconhecia.
Deitava.
Ficava de contar minutos, apenas respiração, na penumbra parada entre tomar
conhecimento de si e aceitar-se. E logo sobrevinha a bola de pensamento mudo – quantas
dúvidas comporta uma vida tão pequena? Puxava o lençol, e tomava todo o impasse
para esconder dentro dos sonhos, isento de cores, que o dia seguinte seria
novamente o percebimento do desvio, e assim o sempre. Não havia régua que o
medisse, não havia chão em que aprumasse sua transparência disfarçada; seu
código era outro, seus brasões, sua ânsia, seus suores. Seu sangue seria
derramado por outro sacrifício quando chegasse a hora. E assim permanecia a
incerteza: eu vou com isso?
O
mundo a repetir que meninos são meninos como meninos devem ser conseguiria converter
sua diferença em semelhança? Haveria tal força? E a menina, dentro dos seus
olhos, refletida no espelho, quem era? Com o traço impreciso de gente pequena rascunhava
na mente o mundo como sendo uma imensa bola hermética, onde códigos e leis têm
mais protagonismo que pessoas. E, percebendo-se, concluiu que a diferença é uma
bola ainda maior, da qual todos fogem a calcular que não há caminho para um
retorno. Ninguém quer arriscar permitir outras estradas; é mais cômodo reproduzir
os desconhecimentos. Ele, no entanto, tão deixado ao acaso, rolava nisso de não
caber exatamente no formato – um desviado, dançando sem música, dentro da vida
que nunca passava.
Tudo
assim percebido doía baixinho no início do sono, sob aquele lençol deslizante que
nunca cobria. Depois viriam as manhãs para o cumprimento dos calendários. Ao
mesmo tempo, cresceriam os silêncios, e assim outro enorme cinza se transformaria
em tarde, e a tarde não traria solução para a menina dentro dos olhos no
espelho. A diferença levaria o menino a dançar sem música, a compor lamentos
sem doer em lugar certo. Seria interessante experimentar o vão inteiro do desvio,
mas, depois dos cálculos reais, ele compreendeu que era incerteza demais para o
tanto de normalidade que circundava o seu mundo.
Numa
certa manhã, utilizando diversos disfarces, conseguiu trancafiar a diferença
dentro de algum ponto inativo de sua mente. Para concluir o processo, maquiou
gestos, travou braços e deixou de ouvir a música que o fazia dançar. E temendo
que a diferença lhe escapasse pelos olhos, passou a evitar espelhos. Em
seguida, deixou emergir de si um ser inventado, que passou a distribuir
sorrisos que diziam “sou normal; aceite-me, por favor”. O restante da história não
demorou a ter encaixe. A imensa bola hermética do sistema que ali passava no
sempre, superlotada, com o mundo dentro, no caminho que deve ser, parou na
primeira esquina, e ele entrou. E foi muito bem recebido por todos; afinal, a diferença foi silenciada.
A partir disso, com os ímpetos deixados às grades, um bem-estar inventado passou a contar a sua história: "Estão vendo? Eu sou normal". Contudo, por estar um disfarce constituído de forças antagônicas, há quem encontre nisso mais de um final na
história.
Ricardo Fabião (Outubro - 2010)
Texto para o desafio de novembro - Fábrica de Letras
Tema: Transparência
A imagem "O menino e a boneca" é da autoria de Graça Martins;
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