Disparou a palavra 'amor' contra o carcereiro. Com urgência. Foi quase sussurrada, ao ouvido; aproximou-se, e disse assim, no último instante. Depois da palavra e do fio deixado pelo cheiro do uniforme na lentidão do corredor, o prisioneiro recebeu sua injeção de adeus, e nada mais se ouviu daquele corpo. Ficou só a palidez encerada sobre a maca e o vazio impune da seringa. Contudo, aquele carcereiro, de armas e poderes, convicto, defensor dos seus brasões de homem, até morrer e matar por isso faria, recebeu aquela última palavra e olhar, um repasse de chave, e ficou intrigado, e sentiu apertos de uma estranha saudade a poucos metros do corpo inerte do criminoso. O detento havia acertado as esquinas daquele que não se conhecia, e levou dele mais sangue ao silenciar do que seria com um tiro; doeu o instante todo, invadiu mais lá. E se é ajustado afirmar que palavras podem ferir, que se confirme ali um homem mortalmente ferido. Depois ficou a reverberar nas horas de sempre o sentido da palavra que jamais se abriu por completo; se era uma chave, não poderia ser usada, não foi. Nunca. Por que o preso não esbravejou? Por que não maldisse aquele instante? Fúria de homem para homem é mais fácil de tamanho, está no entendimento da força. Mas não foi assim. Que mundo havia naquela palavra? Que portas ela abriu? Mas, sendo porta, teria o carcereiro coragem para cruzá-la? Sobreveio o tempo. Permaneceu aquele olhar gritando para trás, na fundura do corredor que avançava, imagem que o carcereiro eternizou com angústia e engasgos. À noite, sozinho, diante de seus vazios, pensava e não pensava, sentia e não sentia, e que não desse significados àqueles silêncios! O que valia aquela última palavra multiplicada pela profundidade daqueles olhos? O que pretendia aquele ‘amor’ mencionado ali, onde, estando já à morte, seria só uma palavra? Era mais do que isso. Aquela coisa deixada ao ouvido abriu lacunas, tornou o chão um terreno movediço. Se o preso quis posteridade conseguiu; se, sussurrando, mencionou amor, deixou ao carcereiro um corte na respiração, impossibilitado agora de conseguir sossego com o que exigia de si, conhecer-se: uma porção mais pesada que o inteiro. Recebeu sibiladamente aquela verdade que gritava na sua alma, um dizer de poucas sílabas, tão breve, tão eterno. Não havia amigo para uma confissão, nem aceitação para aquele impasse. Homem guardador de tristezas e pouca luz, não permitiria que se desmontassem as moléculas mais resistentes do seu ser. Cavou, pois, fundo, o amor disparado em vez de balas, às vésperas do silêncio todo, do corredor para um nada enorme, nem céu por testemunha, apenas um sangrar. Foi com essa dor a esperança deixada na palavra, a última, com urgência de permanecer, algo que suplica por um eterno ficar. E os anos se arrastaram, e as insônias o mantiveram em constante suspensão. Por esse repasse, o morto nunca deixou de estar e de seguir junto; a palavra sussurrada ao ouvido só silenciou anos depois, juntamente com o homem firme, de armas vencidas, que nunca entendeu o sentido todo daquele disparo, mas que o abrigou em seu ser com memória e zelo, eternizado em sua versão original: ‘amor’.
Ricardo Fabião (Julho - 2010)
Texto para o desafio de Julho - Fábrica de Letras
Tema: "Disparou..."
Ricardo, adorei a forma como abordaste este tema polémico. A escrita é rica e capta a atenção.
ResponderExcluirAcho que voltarei :)
PARABÉNS PELA POSTAGEM.. SUPER CARINHOSA..PERFEITA. OS DISPAROS DO CORAÇÃO...
ResponderExcluirESTOU TAMBÉM PARTICIPANDO...
UM TEMA BELO, MAS QUE PARA MIM É TRISTE. REGISTREI NA INTERAÇÃO A MINHA TRISTEZA PELOS DISPAROS. A VIDA É UMA INCOGNITA. ASSIM COMO NA CURIOSA..DEIXO O REGISTRO NA INTERAÇÃO..
http://sandrarandrade7.blogspot.com/
UM GRANDE ABRAÇO
SANDRA
Sem dúvida alguma que gostei. "Disparou a palavra amor"
ResponderExcluirJá ando por cá. Volto.
Excelente texto...
ResponderExcluirMuitos parabéns.
O amor quebra tudo. Quebra todas as convicções.
Beijinho.
Maravilhoso disparo esse! abração,linda participação!chica
ResponderExcluirBravo!!!
ResponderExcluirNada teria mais poder do que isso. Não foi um revide, não foi uma lição. Não foi desespero nem desapego. Foi o adeus que sua alma conseguiu dar.
Sabe o único problema dos teus textos, Ricardo? Qualquer elogio feito a eles torna-se inútil e pequeno. Faltam palavras para descrever as sensações e os sentimentos com os quais tu nos presenteia. Mas vou tentar: profundo, lindo, comovente!
:)
Abraço!
Mais um belo conto!
ResponderExcluirO disparo de amor é como uma bala perdida... Nunca esperamos ser atingidos, mas estamos sempre vulneráveis.
Beijo, querido.
Ane
"Disparou" e disparou muitíssimo bem, um tiro certeiro, um tiro no coração que leva a "dor" a eternizar-se...A vulnerabilidade maculada sem hipóteses de se "limpar".
ResponderExcluirAbracinho
"Fúria de homem para homem é mais fácil de tamanho, está no entendimento da força."
ResponderExcluirVc é bom nesse ofício árduo, Fábio, muito mesmo.
Já tem algum livro publicado?
... E já é um dispari bem fundo, não causa sangue mas pode doer bem mais , porque é um disparo que vai permanecenco, não é momêntaneo...!
ResponderExcluirGostei*
Uma arma... o poder de uma palavra!
ResponderExcluirSem mais comentários.
Adoro ler o que escreve, Fabião.
bjs
O homem pode morrer, mas as palavras ficam para sempre - ditas ou escritas.
ResponderExcluirGostei muito do texto.
Beijinhos
Muito bom. Gosto dessa escrita em situação, como um recorte de tempo que não precisa ser justificado por seus antecedentes.
ResponderExcluirO sentido invasivo do amor: fissura semântica na armadura aparentemente empedernida.
Abraço.
Olá, Ricardo, muito interessante o conto, bem escrito, consistente e de solidez impressionante. A sutileza com que você coloca metaforicamente a palavra "amor" é de admirar.
ResponderExcluirParabéns pelo seu espaço, pelos escritos e pela postagem.
O meu último post trata-se de agradecer; digo que fazer parte dos cantinhos dos amigos do meu blogue me engrandece, e o Ricardo já faz parte... adoro escrever, e as palavras têm o peso que lhes damos, mas é imensurável o poder das palavras, em qualquer contexto. Espero aprender com tudo o que aqui leio; sempre ouvi que aquilo que lemos nos desenvolve a nossa escrita e faz de nós mentes mais abertas e atentas. Gosto do poder das suas palavras. Em mim elas têm um efeito de criação.
ResponderExcluirObrigada. E se quiser, veja no meu blogue o meu agradecimento, porque também faz parte dele.
Um beijo sem fronteiras. :)
Um belo e triste bombardeio coronário.
ResponderExcluirBravo, Ricardo. Tecer-lhe elogios já está virando redundância. Nesse caso: Que se danem os gramáticos.
Vc é sensacional, amigo.
Um abraço!
Ricardo, nao posso dizer que sou grato pelo que me disse porque sei que não se trata disso e, sim, de um encontro entre almas que se enxergam e se reconhecem. Nada sei de ti, e sinto profundamente esse escritor que vive o que escreve, que nao faz da palavra enfeite ou arma, apenas dispara sentimentos e suas verdades em busca da liberdade de ser e, quem sabe, alguém qdo te lê tb aprenda o prazer de se ser como é.
ResponderExcluirVeleu, parceiro
E há tiro mais fundo que a palavra amor?!
ResponderExcluirBeijos
A primeira frase é arrebatadora. E o texto é perfeito. Um pérola que nos prende a atenção do início ao fim.
ResponderExcluirabrs!
Querido amigo Ricardo,
ResponderExcluirobrigada pelos (sempre sábios) comentários!
Viver é estar constantemente numa roda gigante: ontem, eu estava na base; hoje, estou no topo. E assim a vida continua... E você, o que me diz? =]
Beijo grande,
Ane
Passei para conhecer seu blog e fui bombardeada com palavras sábias e interessantes.
ResponderExcluirMuito bacana.
Bjs
Ricardo, masi uma vez entrei e mais uma vez me deliciei com a tua escrita.
ResponderExcluirGosto da forma como escreves, e a força das tuas palavras.
O tema está muito bem abordado. A força do amor, como arma, como disparo inesperado que mata por dentro, mesmo em vida.
Muito bonito