julho 01, 2010

O repasse


Disparou a palavra 'amor' contra o carcereiro. Com urgência. Foi quase sussurrada, ao ouvido; aproximou-se, e disse assim, no último instante. Depois da palavra e do fio deixado pelo cheiro do uniforme na lentidão do corredor, o prisioneiro recebeu sua injeção de adeus, e nada mais se ouviu daquele corpo. Ficou só a palidez encerada sobre a maca e o vazio impune da seringa. Contudo, aquele carcereiro, de armas e poderes, convicto, defensor dos seus brasões de homem, até morrer por isso faria, recebeu aquela última palavra e olhar, um repasse de chave, e ficou intrigado, e sentiu apertos de uma estranha saudade a poucos metros do corpo inerte do criminoso. O detento havia acertado as esquinas daquele que não se conhecia, e levou dele mais sangue ao silenciar do que seria com um tiro; doeu o instante todo, invadiu mais lá. Depois ficou a reverberar nas horas de sempre o sentido da palavra que jamais se abriu por completo; se era uma chave, não poderia ser usada, não foi. Nunca. Por que o preso não esbravejou? Por que não maldisse aquele instante? Fúria de homem para homem é mais fácil de tamanho, está no entendimento da força. Mas não foi assim; ficou aquele olhar gritando para trás, na fundura do corredor que avançava, e o carcereiro acompanhou com semelhante ânsia até engasgar. O que valia aquela última palavra multiplicada pela profundidade daqueles olhos a dizer? O que pretendia aquele ‘amor’ mencionado ali, onde, estando já à morte, seria só uma palavra? Era mais que isso. Aquela coisa deixada ao ouvido abriu lacunas, tornou o chão um terreno movediço. Se o preso quis posteridade conseguiu; se em sussurro jurou amor, deixou ao carcereiro um corte na respiração, impossibilitado agora de conseguir sossego com o que exigia de si, conhecer-se, uma porção mais pesada que o inteiro. Recebeu na alma aquela vibração sonora, de poucas sílabas, que desmontaria em breve as moléculas mais resistentes do carcereiro, homem guardador de tristezas e pouca luz. Cavou, pois, fundo, o amor disparado em vez de balas, às vésperas do silêncio todo, do corredor para um nada enorme, nem céu por testemunha, apenas um sangrar. Foi com essa dor a esperança deixada na palavra, a última, com urgência de permanecer, algo que suplica por um eterno ficar. E os anos se arrastaram, e as insônias o mantiveram em constante suspensão. Por esse repasse, o morto nunca deixou de estar e de seguir junto; a palavra sussurrada ao ouvido só silenciou anos depois, juntamente com o homem firme, de armas vencidas, que nunca entendeu o sentido todo daquele disparo, mas que o abrigou em seu ser com memória e zelo, eternizado em sua versão original: ‘amor’.

Ricardo Fabião (Julho - 2010)

Texto para o desafio de Julho - Fábrica de Letras
Tema: "Disparou..."

22 comentários:

  1. Ricardo, adorei a forma como abordaste este tema polémico. A escrita é rica e capta a atenção.
    Acho que voltarei :)

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  2. PARABÉNS PELA POSTAGEM.. SUPER CARINHOSA..PERFEITA. OS DISPAROS DO CORAÇÃO...
    ESTOU TAMBÉM PARTICIPANDO...
    UM TEMA BELO, MAS QUE PARA MIM É TRISTE. REGISTREI NA INTERAÇÃO A MINHA TRISTEZA PELOS DISPAROS. A VIDA É UMA INCOGNITA. ASSIM COMO NA CURIOSA..DEIXO O REGISTRO NA INTERAÇÃO..
    http://sandrarandrade7.blogspot.com/

    UM GRANDE ABRAÇO
    SANDRA

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  3. Sem dúvida alguma que gostei. "Disparou a palavra amor"

    Já ando por cá. Volto.

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  4. Excelente texto...

    Muitos parabéns.

    O amor quebra tudo. Quebra todas as convicções.

    Beijinho.

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  5. Maravilhoso disparo esse! abração,linda participação!chica

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  6. Bravo!!!

    Nada teria mais poder do que isso. Não foi um revide, não foi uma lição. Não foi desespero nem desapego. Foi o adeus que sua alma conseguiu dar.

    Sabe o único problema dos teus textos, Ricardo? Qualquer elogio feito a eles torna-se inútil e pequeno. Faltam palavras para descrever as sensações e os sentimentos com os quais tu nos presenteia. Mas vou tentar: profundo, lindo, comovente!

    :)

    Abraço!

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  7. Mais um belo conto!

    O disparo de amor é como uma bala perdida... Nunca esperamos ser atingidos, mas estamos sempre vulneráveis.

    Beijo, querido.
    Ane

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  8. "Disparou" e disparou muitíssimo bem, um tiro certeiro, um tiro no coração que leva a "dor" a eternizar-se...A vulnerabilidade maculada sem hipóteses de se "limpar".
    Abracinho

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  9. "Fúria de homem para homem é mais fácil de tamanho, está no entendimento da força."
    Vc é bom nesse ofício árduo, Fábio, muito mesmo.
    Já tem algum livro publicado?

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  10. ... E já é um dispari bem fundo, não causa sangue mas pode doer bem mais , porque é um disparo que vai permanecenco, não é momêntaneo...!

    Gostei*

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  11. Uma arma... o poder de uma palavra!

    Sem mais comentários.
    Adoro ler o que escreve, Fabião.

    bjs

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  12. O homem pode morrer, mas as palavras ficam para sempre - ditas ou escritas.
    Gostei muito do texto.
    Beijinhos

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  13. Muito bom. Gosto dessa escrita em situação, como um recorte de tempo que não precisa ser justificado por seus antecedentes.
    O sentido invasivo do amor: fissura semântica na armadura aparentemente empedernida.

    Abraço.

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  14. Olá, Ricardo, muito interessante o conto, bem escrito, consistente e de solidez impressionante. A sutileza com que você coloca metaforicamente a palavra "amor" é de admirar.
    Parabéns pelo seu espaço, pelos escritos e pela postagem.

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  15. O meu último post trata-se de agradecer; digo que fazer parte dos cantinhos dos amigos do meu blogue me engrandece, e o Ricardo já faz parte... adoro escrever, e as palavras têm o peso que lhes damos, mas é imensurável o poder das palavras, em qualquer contexto. Espero aprender com tudo o que aqui leio; sempre ouvi que aquilo que lemos nos desenvolve a nossa escrita e faz de nós mentes mais abertas e atentas. Gosto do poder das suas palavras. Em mim elas têm um efeito de criação.
    Obrigada. E se quiser, veja no meu blogue o meu agradecimento, porque também faz parte dele.
    Um beijo sem fronteiras. :)

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  16. Um belo e triste bombardeio coronário.
    Bravo, Ricardo. Tecer-lhe elogios já está virando redundância. Nesse caso: Que se danem os gramáticos.
    Vc é sensacional, amigo.
    Um abraço!

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  17. Ricardo, nao posso dizer que sou grato pelo que me disse porque sei que não se trata disso e, sim, de um encontro entre almas que se enxergam e se reconhecem. Nada sei de ti, e sinto profundamente esse escritor que vive o que escreve, que nao faz da palavra enfeite ou arma, apenas dispara sentimentos e suas verdades em busca da liberdade de ser e, quem sabe, alguém qdo te lê tb aprenda o prazer de se ser como é.
    Veleu, parceiro

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  18. E há tiro mais fundo que a palavra amor?!
    Beijos

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  19. A primeira frase é arrebatadora. E o texto é perfeito. Um pérola que nos prende a atenção do início ao fim.

    abrs!

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  20. Querido amigo Ricardo,

    obrigada pelos (sempre sábios) comentários!

    Viver é estar constantemente numa roda gigante: ontem, eu estava na base; hoje, estou no topo. E assim a vida continua... E você, o que me diz? =]

    Beijo grande,
    Ane

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  21. Passei para conhecer seu blog e fui bombardeada com palavras sábias e interessantes.
    Muito bacana.
    Bjs

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  22. Ricardo, masi uma vez entrei e mais uma vez me deliciei com a tua escrita.
    Gosto da forma como escreves, e a força das tuas palavras.
    O tema está muito bem abordado. A força do amor, como arma, como disparo inesperado que mata por dentro, mesmo em vida.
    Muito bonito

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