Márcio Bernardo levou consigo a mágica de colher azuis e de distribuí-los.
Foi um grande amigo meu; hoje só viaja.
Desejo-lhe todo azul de que precisa para o que segue depois do muro.
A ele ofereço este pequeno conto.
Ele era aquele que decidiu colher os azuis do mundo. Com essa diferença de ser e de arriscar, ele foi por toda a vida, e foi o último. E como não houve companhia para esse sentir, teve de cumprir sozinho a estranha sina da cor que não sai. O primeiro azul que apanhou estava no sorriso de sua mãe. Era um azul muito por baixo da cor da boca, mas já era o início de sua coleção. E gostou tanto dessa tonalidade que quis para si sorrir sempre, imaginando que tudo que sorri é feito de azul. E foi essa alegria sem medida que o levou aos azuis de outros recantos. A partir do segundo azul, que era o da bola de gude, ele enxergou as estrelas guardadas dentro do vidro redondo, e concluiu que os azuis mais fascinantes dormem nos lugares aos quais um pé não chega. Guardou então esse cálculo para no futuro somá-lo a tudo, quando saísse a buscar infinitos, sem desconfiar de que essa fundura de azul já estava consigo. No primeiro passeio depois do dia, engarrafou um pouco do céu, que é o azul dos quatro lados; em seguida, o mar, com suas variantes de azul-verde e de azul-cinza; foi até lá, e colheu-o à praia, cautelosamente, com um conta-gotas, pois há muita água e não cabe levar de tão pesado. E sendo ainda menino sabia imaginar todo o oceanocdentro de alguns pingos. Antes haviam dito que o mar não era azul verdadeiro, mas ele constatou que de tanta distância indo, no mais depois, haveria de ser azul só. Recolhidos então aqueles mais abrangentes e de serviço a todos, os outros azuis eram os dos olhos, de como eles extraem o mundo para si, de como podem ser generosos ou mesquinhos. E nesse avançar, encontrou tipos muito estranhos de azuis; alguns que eram mais disfarce do que cor; outros adentravam vaziamente vaidades e soberbas, tanto assim que desazulavam-se em imensos escuros e medos. Enquanto isso, os amigos, aqueles que com ele dividiam os azuis do mundo, sabiam que viver de procurar somente azul poderia ser perigoso, pois astúcia e esperteza são tonalidades que simulam azuis para atrair colhedores ingênuos. E disseram do perigo de ir muito lá e da descoloração do tempo, já que o azul tem um tempo de vida determinado pela profundidade de quem vê. Contudo, nosso colhedor, sempre tão resoluto, azulou, azulou, que não cansou da cor e dos planos disso mais. E rumou até o mais viver. Os amores da estrada ele vestiu de azul, o sofrimento, com a mesma intensidade, e aí fez disso as intenções e as memórias. E foi assim. No último dia, esse incansável apanhador de cor, em desejo de azul do infinito, quis provocar a alegria mais acesa de um sentir-se, e inebriado com a quantidade de luzes que disso vinha, não apenas da região azulada, mas do cruzamento de todas as suas variantes com lilases, com laranjas e olivas, não calculou a profundidade do passo: e isso foi só despedida. Mergulhou dentro de sua alma, espalhando-se imaterialmente por entre os azuis do ar. Na mão, o conta-gotas vazio; na estrada interditada alguns tantos sonhos, um corpo no chão, sem ir. Caiu pois do outro lado do muro, do último, sob um silêncio inteiro, de cortar os fios, de alegria ali parada, sem cor que lhe pudesse socorrer. A única possibilidade feliz dessa tristeza foi o encaixe completo dos azuis que faltavam à sua coleção, que agora tinha azuis daqui e azuis de lá. O resto da história é toda de desencaixe: os de cá, vivos, de olhos caídos de falta, sem as lições do sorriso e da generosidade, e o abandono dos azuis do mundo, que ainda estão à espera de outro colhedor, e ele foi o último.
Ricardo Fabião (Junho 2010)
(a imagem acima é de Marcelo Bresciani)
Ricardo!
ResponderExcluirViajei nas linhas deste conto tão singelo e tão profundo... Meus olhos e minha alma coloriram-se com todas suas matizes. Além do pesar pelo colhedor que se foi, permite-me sentir despontar a esperança de que ele não tenha sido o último?
Abraço, meu amigo.
Aposto, sim, em muitos outros
ResponderExcluircolhedores de azul, Renata...
É que o conto carrega muito
sentimento; e sentimentos correm
além das mãos e dos olhos.
Feliz por você ter aparecido aqui.
Beijos.
Ricardo
:)
ResponderExcluirAzul é uma cor linda.
A cor dos meus sonhos, dos meus medos e das minhas vitórias.
Aliás, os meus olhos também têm azul... Azul com amarelo, a que chamam VERDE... :)
Beijinho*
Maravilhosa colheita essa de azuis pra redistribuir por aí...Lindo!abração,ótima semana,chica
ResponderExcluirInteressante como os arco-íres das nossas vidas se vão com a chuva... e só percebemos após a estiagem.
ResponderExcluirO azul, porém é o único que permanece pra sempre em nossas vidas!
Andressa Fabião
Nesse mundo faltam tantas coisas que, se faltasse mais uma, não haveria lugar para ele".
ResponderExcluirSeu conto me fez viajar no excelente paradoxo de Macedonio Fernandez.
Seu amigo me perece ter sido um catador de poesias entornadas nos vazios deste mundo.
feliz de que pode lê-lo, meu amigo.
Um abraço.
"Os amores da estrada ele vestiu de azul."
ResponderExcluirRicardo, que bela imagem imaginar o amor assim, todo vestido de azul, assim como todos os outros sentimentos.
O interesante é que a gente acaba de ler, e fica imagiando tudo azul...rs
A sua poesia é azul... Eu a vestiria de azul, com certeza!
Beijos e carinhos meus!
Coração apara azuis. Eu gosto quando a cor é a de pintar os setes da vida.
ResponderExcluirAbraço, Fabião.
Sigamos...
Lembrei de um grande colhedor de azuis: Carlos Pena Filho.
ResponderExcluirRicardo, o meu coração ainda bate ao ritmo do maravilhoso azul que é este teu conto. Tão belo, tão ... que me faltam as palavras para conseguir descrever o que sinto, pois neste instante só sei que estou imersa no mais belo azul, azul único e intenso das tuas palavras.
ResponderExcluirBeijinhos doces e obrigada por este azul, Ava.
Estou simplesmente "cheia" de azul.
ResponderExcluirDesde os meus olhos ao lerem este seu maravilhoso texto, até à minha alma triste pela partida do seu amigo.
Que o azul imenso do céu seja o seu doce e eterno leito.
Fiquei sua fã :-)
Um beijinho
Fê Blue bird
Gosto de pensar que sinto o cheiro das cores e, aqui no seu conto, vejo que isso é possível. Sim, é possível escutar, sentir e até colecionar. Basta o desejo.
ResponderExcluirgostei de vir aqui. Um abraço
É muito interessante a ressignificação dos signos
ResponderExcluirdo conto a partir dos comentários de tão nobres colhedores
de palavras e cores...
É como se juntos fôssemos construindo novas possibilidades
de azul; intensificando o já dito; e cavando mais, até
alcançarmos o mais indizível sentido.
D.R., Chica, Andressa, Jairo, Ava, Germano, Fred,
Ava Santos, Fê e Jacinta, a todos agradeço a visita
e as palavras.
Beijos;
abraços.
Ricardo
Associo o azul residente em meu olhar e aquele que, por maior, não consigo alcançar e sei, existe, ao seu conto, dávida generosa em torno da amizade. A vida é uma viagem interminável que não se extingue no poente dos olhos - vai mais além.
ResponderExcluirEste, como o anterior trabalho que aqui deixou, são sintomáticos de que quem escreve se, intrinsecamente, tem valores, como ao caso, deixa mensagens profundas aos intertextuantes em que a palavra escrita tece escalas na pauta de silêncios introspectivos a que a literatura cognitiva nos obriga.
Muito bom o que nos delega aqui.
Saudações com admiração e estima
Um lindo conto Ricardo, gostei muito... bjs
ResponderExcluirObservei as curvas. Das palavras...
ResponderExcluirGostei. Por isso estou a seguir-te!
beejo!
Muito lindo!
ResponderExcluirEmocionada com seus azuis...como todos os tons de esperança neles encerrados...em todas as cores desses azuis...
ResponderExcluirBeijos
Belo conto, e, aliás, gostei muito do blog, Parabéns !!
ResponderExcluirThaís
Boneca,
ResponderExcluirprimeiramente agradecer-lhe a visita; segundo
dizer-lhe que a análise que me fizeste do traço
corresponde perfeitamente ao que foi apresentado nos dois
últimos contos.
São narrativas pautadas no silêncio e na introspecção.
Volte sempre.
Beijos.
Poetic,
mais uma vez agradecer-lhe as palavras, que muito
me impulsionam à poesia.
Beijos.
Essência,
bom que percebeste as curvas,
que percebeste as palavras,
o restante é deixar-se ao próprio tempo.
Beijos.
Amanda Bruna,
seja bem-vinda ao "Curvas da palavra";
agradeço-lhe a visita e as palavras deixadas.
Beijos.
Keila,
se os azuis do conto conseguem causar-te emoção,
certamente estão bem distribuídos nas linhas
que constroem o sentido. Fico feliz que tenhas
gostado; feliz também por novamente me visitares.
Beijos.
Thaís,
agradeço-lhe as palavras e a visita.
Volte sempre.
Beijos.
Ricardo.
AZUL DE VOCÊ...
ResponderExcluirAzul foi a cor
dentre tantas escolhida para identificar o amor.
Havia somente uma
coloração acinzentada em meu interior,
como a neblina que antecede as
chuvas invernais...
E desisti da melancolia, sobrepujei a agonia,
revelando o
desejo de sorrir uma vez mais...
Descobri a cor quando
escrevi seu nome no cantinho da tela,
onde bordei lembranças em
várias nuanças, que me trouxeram
a fragrância que imaginei ter
esquecido.
Meu lábio tremeu ao perceber o azul de você,
inconfundível,
na confusão de sentimentos.
O azul que conheço, o
meu céu, o começo de um abraço e
o som do sussurro que me encanta,
quando você enfim,
se declara enamorado.
E me lambuzo do mel
que degusto de seus lábios.
Iveti Specorte ♥
com carinho,
Sílvia
PS.:Vá na minha Casa. Estava bem abandonadinha. Só M. Ajuste. Hoje me dei um miminho. se desejar, pode entrar!
Um dia, escrevi: sentimentos azuis são os que vestem melhor. Hoje, constato.
ResponderExcluirabs
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirRicardo,
ResponderExcluirBelíssimo seu texto! Sinto-me também um pouco colhedora de 'azuis' pelo Mundo... Seu amigo deve ser muito especial. Beijos a ele!!!
E a você também por apresentar essa sensibilidade tão apurada...
Beijos!