junho 06, 2011

Aos porões o sempre



        Que se diga inicialmente que havia tristeza e silêncio nas horas do homem da história. Quanto à descrição do quarto sem luz em que o encontramos, que se enfatize a impossibilidade da porta e das janelas - era o mundo do homem só. Sobre as dores que o cercavam, saibam, não havia sono que o libertasse de si nem remédio para as feridas que colhera no tempo. Em seguida, mencione-se que, a metros dali, dormia a coordenadora da casa de repouso em que morria lentamente o referido homem da tristeza. Essa senhora, ao saber da escuridão e dos porões que guardavam as tristes memórias do mundo de antes do senhor do quarto, decidiu convidar à história quem dela faria melhor uso – a moça da vingança. 
        Assim, apareceu nessa tristeza contada a mulher que tinha mais passado no seu presente, e carregava em sorrisos de metade os eternos traumas e as ausências. Ela começou a visitar o homem do silêncio na semana seguinte, fingindo ser aquela que usava afeto e sensibilidade como motivadores de sua repentina chegada. Asilos são lugares que conseguem somar amistosamente desconhecidos – gente que precisa com gente que se doa. E abrindo-se todo o caminho, como se fosse acaso, os dois se conheceram. E sendo vingar-se o seu único propósito na história, sentiu-se traída por si mesma, quando só conseguiu, diante daquele homem velho e decrépito, pronunciar "olá". Como lutar com monstros indefesos? 
        Sem ter respostas ali, procurou um banheiro. Diante do espelho, decidiu silenciosamente: mudanças. Com segundos planos, ela estendeu ao homem da solidão parada a estrada das mil possibilidades. No primeiro sorriso ele já acreditou. E foi tanta visita aos sentimentos que ele voltou a dormir. Também nos dias de sol ele arriscou alegrar-se; e com mais medidas de tudo voltou a amar. A moça da intenção velada, com idade de filha, devolveu, curiosamente, o oposto do que recebeu em dobro. Daquele ser semipresente reinventou um homem, deu-lhe vida. Então o amor passou a ser o tamanho do quarto, que ficou pequeno para existir dentro e só. Ela o levou aos passeios da cidade, aos sorvetes das tardes, ao colorido movimentado das manhãs, como se o amasse como pai, como se houvesse isso na intenção. No entanto, ele, amando-a como se fosse filha, abriu os caminhos da alma, tanto assim escancarada para não haver volta, sem calcular quanta dor estava implicada nisso. 
        Eis o resultado: com amor consolidou-se aquele controverso laço. A moça conseguiu. Aos de vingança, o melhor momento de ataque é o percebimento da fragilidade do adversário. E foi isso que se deu naquela tarde. O homem, agora da alegria, ouvia música em seu quarto, quando de repente ela entrou, sem cumprimentá-lo, e espalhou sobre a mesa várias fotos de um casal. Eram imagens de rosto em papel amarelado: mãe e pai da moça. Os pequenos recortes de jornais também ali espalhados noticiavam a morte dessas pessoas – discursos abafados, corpos enterrados em matagais. A tragédia inteira, divulgada amplamente pela mídia, décadas antes, mencionava uma suposta desavença econômica entre duas famílias. Esse era o motivo. Para que o crime se consumasse, houve o mandante, o pagamento, o serviço, o executor, o crime, o local, os alicates, as cordas e os porões. E houve depois disso o tempo, que transformou o assassino em velhinho indefeso, morador de uma casa de repouso. 
        Subitamente, a tristeza, velha companheira, rebocou-o de volta ao passado, ao silêncio do pequeno quarto na escuridão. Olhou para as mãos enrugadas. Não havia água que lavasse ali a sensação de sangue, nem música que apagasse os gritos ainda lá nos corredores sombrios da memória. Ela insistia com o amor, fitando demoradamente as fotografias, deslizando os dedos sobre aqueles sorrisos de papel, a maldizer sua condição de órfã, com perguntas sem intenções de respostas, só desabafo. Esse tanto de amor presenciado, recém-percebido, sem doer em lugar certo, torturava o homem da tristeza sem fim, que tanto investiu nas tramas do caminho oposto - violência. Curiosamente, a última lição a conferir desse amor era contra ele mesmo, algo a roer-lhe a consciência no sempre dos dias, a mostrar-lhe tardiamente o outro lado da história. 
        A moça da vingança chorou mais três instantes e saiu. Antes, beijou, por mais intenção de ferir, a testa daquele que assassinou seus pais: era somente um homem idoso, assustado, vencido, mais morto que vivo, a secar no silêncio que cresceu dali para muito mais. Depois da porta, ainda que sem solução para as lacunas, havia o caminho. Ela foi, mas nem assim chegou.

Ricardo Fabião (Junho - 2011)

Texto para o desafio de Junho - Fábrica de Letras


A imagem acima é intitulada "Las manos del terror"; 
foi pintada por Oswaldo Guayasamín (1919-1999).

10 comentários:

  1. Forte e incisivo o teu texto porém entrevê-se a ternura nas suas entrelinha.Trouxe-me lágrimas aos olhos, talvez por mergulhar e me entregar demasiadamente à leitura.Te aplaudo,de pé!parabéns.abçs e muita luz na tua senda.

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  2. Noossa, intenso, forte, mas bem escrito texto! Um abraço,tudo de bom,chica

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  3. uau! prometo que leio mais tarde, estou com tempo apertado... também participei, saudações!

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  4. Ricardo, por vezes mais vale estar morto do que a carregar tamanho sofrimento.
    Parabéns pelo texto.

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  5. Existe sempre um levantar de véu para despertar a consciência de alguém.
    Emotivo, sério e brutal.

    Bjs

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Muito bom o teu texto. Como disse a Mz, intenso. Muitas vezes, é a ideia da vingança que nos faz persisitr... e depois percebemos o quanto perdemos, mas aqui ela, pensa que se vingou... mas porventura, devolveu ao homem a capacidade de amar, e isso é uma dádiva... :) Beijinho

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  8. UAU,Ricardo!Que grande vingança!Um conto muito bem escrito e mantem nossa atenção do começo ao fim!Parabéns por essa maravilhosa participação!Bjs,

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  9. oh muito obrigado pelo comentário, é sempre bom agradar os leitores :)

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  10. Olá, Ricardo
    Tenho aprendido que o tempo resolve milhões de desafios nossos... a vingança nos leva a caminhos tortuosos...
    Abraços fraternos

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