junho 26, 2011

Um minuto para nunca mais


"Nos indivíduos, a loucura é algo raro - mas nos grupos,
nos partidos, nos povos, nas épocas, é regra".
(Friedrich Nietzsche)
        
          Uma cumplicidade de afeto guiava Marcos e Heloísa, presumidamente lúcidos, dentro daquele instante na cidade. Ela ia com o seu coração acelerado na tarde, que era um motor movido pela promessa de futuro a dois e filhos; e ele, com a convicção de que investira acertadamente naquela possibilidade de sentimento compartilhado, buscava e permitia. Além dessa crença de mundo melhor, que é algo de dentro e do pensamento, queimava um leve sol sobre as calçadas, agradável nos últimos raios. E supondo que tudo é ajustado, os dois acreditavam.
            Desde criança, vivera Heloísa sob a custódia de um mundo dentro das medidas, em que só cabiam os ensinamentos estabelecidos já em família: amor e respeito, duas grandezas complementares, cujas forças teriam potência para enfrentar a brutalidade dos dias. Aprendeu de tal forma essa lição que deitou-a como caminho, e rumou. E cresceu. Agora, completava vinte e oito de vida, radiante, a julgar-se ainda menina, de tanta paixão, nos braços de Marcos. Era como se enxergava, entusiasmada com a própria respiração, certa de que viveria mais oitenta anos ao lado dele. Essa era a história que sabia contar sobre ser e viver.
          Quando se conheceram, dois anos antes, ela narrou essa alegria para Marcos, e, ele ouvindo, deixou-se contagiar, e disse ‘sim’, e casaram-se. Depois, amontoando-se os dias, consolidou-se o tal projeto de amor: estrada de tempo vezes espaço vezes profundidade à qual se entregaram e na qual fincaram o passo. E seguiam crédulos, movidos pela promessa de mais cumplicidade, naquele que era um dia especial. Ela havia saído mais cedo do trabalho para um sorvete de aniversário. Foi o que sugeriu como presente ao marido: apenas vê-lo e ouvi-lo, enquanto uma montanha gelada de chocolate seria devorada. Era nisso que residia sua eterna ânsia: um amor tranquilo para tomar como chão. 
         Terminado o sorvete, e estando mais suaves os raios solares, deixaram a sorveteria, e se aventuraram na incerteza das ruas. Agora, inspirados pelo movimento colorido dos carros e das pessoas, entretinham-se com planos de viagem ao exterior, de um cachorro para desfazer alguns silêncios, essas e outras maneiras de sorrir com a vida. E assim avançaram os minutos e as esquinas, ao passo que os sorrisos e os olhares se tornaram todo o instante. Ela respirava profundamente para absorver a plenitude daquele pôr de sol, calculando que nada, em lugar nenhum, poderia experimentar tão perfeita sensação de completude. 
          Entretanto, ainda que parecesse improvável aos dois, apareceu ali, subitamente, aquele de harmonia quebrada, um ser no desespero, de esperança há muito deixada no esquecimento. O desconhecido esbarrou sua trajetória invertida no casal. E essa junção de energias, pela diversidade de suas intenções, mudou o pé e a estrada; nenhum deles avançou depois daquele encontro. E foi tudo muito rápido, o revólver na mão do homem, os insultos sibilados, a carteira que ele exigiu, o relógio, os aparelhos celulares, sem alarde, tudo colocado em seu bolso, dentro do casaco, com mãos trêmulas e respiração descompassada, de qualquer jeito. E não houve reação contrária; no entanto, ouviu-se o disparo. Foi uma bala que, saindo do tambor da pistola do assaltante, procurou lugar acima do maxilar de Marcos, e fez caminho em algum cinza de sua cabeça.
           Ele tombou sem chance de um instante seguinte de consciência, pesado, sobre a incerteza silenciosa da calçada. Heloísa, em resposta, com força desconhecida, empurrou aquele que lhes invadiu a tarde, alheia de suas ações, aflita, descompensada. O homem caiu. Apenas ela ficou de pé. Apanhou a arma que estava à sua frente, e a segurou tremulamente. Agora, punha-se em vantagem. Só teria de decidir. Tinha pavor à ideia, porém alvejou a perna daquele que já se levantava na tentativa. E voltou-se para o marido, que buscava respiração nos minutos demorados: Marcos, Marcos, gritava, e nada vinha como resposta.
         No outro ângulo do fato, o desconhecido se arrastava na calçada, com ânsia de outras ruas. Ela então pensou em vetá-lo para sempre, mas lembrou-se de que não acreditava na violência, tampouco nos discursos de força bruta como medida de defesa. Quis e não quis. Olhou para Marcos; queria ouvir uma palavra que orientasse suas ações, mas encontrou um olhar parado. E cresceu ainda mais o seu amor, e, paradoxalmente, o oposto dele. Gritou. Odiou. E conferiu o fim da tarde ao seu redor: nada seria como antes. Seu marido, que, nos projetos de mundo perfeito, seria a mão para a frieza das noites, contorcia-se agora na tentativa de unir ar e pulmões, e não chegava lá. Por que o homem atirou? Por quê? Onde recomeça a história depois de um final infeliz? Se Marcos não sobrevivesse, o que faria com tantos projetos pensados a dois? E aquelas tantas viagens a serem realizadas? E os filhos que ainda seriam gerados? Não havia respostas ajustadas naquela situação.
         Subitamente, algo irrompeu dentro dela. Apanhou o revólver. Enfim, decidiu. Por tudo que perdeu e perderia adiante, pela esquina que não sairia da memória, pelos sentimentos que certamente a sufocariam a partir dali, por todos esses cálculos realizados às pressas, inexatos, inconclusos, afastou-se do marido, e se aproximou do assaltante, que tentava se levantar. Respirou sofregamente, olhou em volta; que força e beleza teria o sol depois daquela tarde? Ergueu levemente o braço, e escolheu um ponto da cabeça do homem. Ouviu-se então o segundo disparo.
         No dia seguinte, nas manchetes impressas e digitais, sob as imagens de uma Heloísa assassina, constavam notas de repúdio, algumas de felicitação. Era a história da moça bem-criada, estudante de Fisioterapia, que atirou em homem desarmado. O assaltante, vítima, não teve chances de defesa ― era um chefe de família, matara apenas quatro ao longo da vida. Sequestrava pessoas e explodia bancos para sobreviver, um desamparado.
        Quanto às informações sobre Marcos, noticiou-se em tímidas linhas que morrera a caminho do hospital, sem poder explicar o motivo de sua demora para aqueles que aguardavam suas instruções na festa-surpresa preparada para Heloísa. Mas, curiosamente, tal fato interessou muito pouco a muitos.

Ricardo Fabião (Junho, 2011)

Texto para o desafio de Junho - Fábrica de Letras

5 comentários:

  1. Adorei o texto, a sua escrita é bastante envolvente. Através da descrição inicial criamos uma ligação às personagens que no fim do texto nos faz querer "lutar por elas".


    Embora tenha gostado muito, gostaria de deixar uma sugestão. Esta prende-se com a falta de parágrafos no seu texto.
    Eu sei que muitas vezes assim o fazemos para criar um ritmo de leitura, visto que como bloggers não somos obrigados a seguir todos as regras de escrita "clássica", ou porque continuamos a desenvolver um mesmo tema dentro da mesma área.
    No entanto, e como lemos estes texto no computador e não em papel, acabamos por nos perder no texto.
    Fica assim a minha sugestão, espero que não leve a mal.
    Izz

    ResponderExcluir
  2. Sem talento é tiro certeiro sempre!

    ResponderExcluir
  3. Que agonia!! Seu texto é maravilhoso como sempre. Tua fã íntima, que te ama.

    ResponderExcluir
  4. O homem julga ser justo, no entanto, muito longe de o ser.

    Bjs

    ResponderExcluir
  5. Belo texto! O fatídico momento apresenta três histórias: a do ladrão, a do Marcos e o da Heloísa. Cada um com o seu fim. O destino não tem coração! Parabéns Ricardo. Léo Brasil.

    ResponderExcluir

Fogo obsessor

                 A velha placa de metal com os dizeres “A mulher que tudo vê e ouve, e que de todas as coisas sabe” estava na parte super...