junho 16, 2010

Ciclo do esquecimento


Ele simplesmente percebeu que era um hamster. Não foi nada que ingeriu, nem mágica ou pesadelo; era mesmo realidade, beliscada, sentida, a mais cruel e assustadora de acontecer, algo de repente, sem a mínima possibilidade de despertar e de não ser mais. Naquela manhã foi isso, um percebimento do tamanho que pode desviar o destino: acordou dentro da gaiola e descobriu-se outro ser, peludo, dentuço, estranho. E não gostou do cheiro que trazia consigo, nem da cor. Conferiu-se pequeno e gordo. E tinha patas que não condiziam com os caminhos desejados. Não apenas isso, achou-se perdidamente estúpido; afinal, o que pode esperar da vida um rato preso? Revoltado, não comeu a ração, não fez a ginástica na rodinha vermelha e tampouco aproximou-se dos novos brinquedos que chegaram naquele dia. Considerou-os alienadores, destituídos de propósitos edificantes. Caminhou pela gaiola, analisando atentamente os detalhes daquela vida de menos, de vitrina, como é possível ser feliz por tão pouco? Divertir-se a roeduras, girar dentro de uma roda estúpida, subir escadinhas, amontoar-se uns sobre os outros como se fossem roupa suja, quero mais disso que sou. Eu sei agora, despertei e vi muito mais. E ele viu que estava só. E soube da tristeza que era não ver, e doeu pelos outros. Por isso impressionou-se com o grau de alheamento daqueles ratos; como podem ser tão limitados, tão previsíveis? Engasgou de tanto limite. Que verbo vem depois de perceber-se? Procurou um lugar próximo à casinha amarela, no segundo piso da gaiola, que era de luxo, ampla, com vários cômodos, mas há fezes por todos os lados, desabafou impaciente. Deitou-se de barriga para cima, e examinou detalhadamente sua estranheza. Um outro hamster vendo-o realizar aquele movimento desconhecido, decidiu imitá-lo; e não demorado, estavam todos eles de barriga para cima, ausentes de razão, satisfeitos, despreocupados, uma cena de ratos. Essa mania de repetição é insuportável, irritou-se nosso protagonista, afastando-se rapidamente dos demais. Depois vieram as horas. Essa sua conflitante descoberta durou muitos dias, tanto assim à descida de si, que ele não pôde dormir como rato que era, nem como outro que desejava ser. Estava na fronteira da aceitação, um estrangeiro. A lucidez, calculava, só ela o conduziria à liberdade; acordado poderia reorganizar o mundo e suas tristes histórias; abrir as gaiolas para mais sol, fazer calar o discurso das rodinhas, redesenhar as narrativas dos pequenos, dos dominados. E quis muito, com excesso e devaneio. Então ele dormiu cansado de querer isso. E os outros ao seu lado, agora acordados, sabiam, ele é muito jovem, pensa que pode interpor desvios à estrada do mundo. Coisa de quem acende, de quem apaga. Logo acordará faminto como um legítimo hamster, e não dispensará uma boa ração. Depois ele deixa de perceber e vive até o fim do pouco que lhe cabe.

Ricardo Fabião (Junho 2010)


12 comentários:

  1. Ricardo...

    Li teu texto com uma certa tensão, pois descobri que sou um hamster! Tentando ser outro bicho, em meio a um monte de hamsters. Quantas vezes dormi cansada, quantas vezes achei ser possível esquecer o que eu era, do que eu precisava, do que eu vim fazer aqui. Mas e a gaiola? Nela durmo e me alimento, e assim vou sobrevivendo para traçar planos mirabolantes que me façam dela escapar... Que loucura tudo isso.

    De novo, me perdi nas curvas das tuas palavras. É um bom horário!

    Abraço pra ti.

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  2. Eu até há pouco pensava que era um passarinho ;-) mas descobri depois de ler este seu magnífico tecto que também sou um hamster.
    O poder das palavras está aqui bem demonstrado, perfeito, parabéns!
    Um beijinho

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  3. Hmm será que temos todos um bocadinho de hamsters? beijocas

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  4. Não sei precisar que sensação senti, meu caro (ficou algo como uma pedra girando em meu estômago), mas posso afirmar que o conto me foi literariamente cativante. Isso sim.
    Quanto à ideia, ao símbolo, nada tenho a acrescentar em meu comentário: o conto já fala por si e os outros leitores já a expressaram muito bem.
    Um prazer ler-lhe, meu caro. Sempre.
    Grande abraço,

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  5. Grande! Coisa apertada saber-se animal neste mundo demasiado humano e fingir-se, o que é pior - comer doses diárias de mesmice e descabimento.
    Encontrar-se, ver-se no texto é uma das maravilhas desta vida. É alimento que nutre alma, além da ração louca de nos impor mais louca razão.
    Abs

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  6. Ricardo, querido!

    Lindo conto!

    Fez-me lembrar de Gregor Samsa, protagonista do romance "A metamorfose", de Kafka: "Certa manhã, ao despertar de um sonho inquieto, Gregor Samsa descobriu-se em sua cama transformado num insuportável inseto."

    Beijos,
    Ane

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  7. Nosso amiguinho hamster bem nos lembra nossa adolescência,
    quando temos coragem e ânsia por mudar o mundo.
    Renata, Fê, Poetic, Rodrigo, Aluisio e Ane,
    colegas de vida e de gaiola...
    que nossa loucura diminua o pesar da nossa
    lucidez.

    Abraços.
    Beijos.

    Ricardo.

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  8. "Que verbo vem depois de perceber-se?"

    Um testo impactante, não mais que a frase acima.
    É a partir desse questionamento que começamos a ter a exata dimensão de nossa insignificância.
    Ricardo, li com a respiração presa.SAbe-se lá o que é isso?

    Voce nos mantém presos a sua narrativo, como se ali estivessemos na pele desse hamister que é a simbologia de todos nós. Insiguificantes que somos, ainda temos a pretensão de mudar o mundo... E olha que não conseguimos mudar nem o que está à nossa volta...

    às vezes preferiria não perceber-me...


    Beijos meus!



    PS: Que belo poema/comentário, ou seria que belo comentário/poema? rs

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  9. Que coisa essa identificação inevitável que esse teu texto me joga na cara. Humpft. Vou dar uma deitada de barriga pra cima pra bolar uma estratégia que me faça nunca, nunquinha, viver até o fim com o pouco que me cabe. Eu quero é mais!

    Ótimo texto, Ricardo.

    Beijoca

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  10. Rapaz, muito bom! Mesmo. A idéia da súbita metamorfose não seria novidade, mas da forma bela com que foi descrita e escrita, ela se renova. Alegoria posta de parte, todos nós nos descobrimos, aqui e ali, ratos de focinhos e olhinhos nervosos, impacientes com a gaiola em que despertamos; mas, perceber essa vida de roedor já nos indispõe com os outro ratinhos conformados. Então, acho que o que se segue ao verbo perceber-se é o verbo "exer(ser)-se", na gaiola ou fora dela.
    Parabéns!

    Abraço.

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  11. o ciclo das vias tomadas na ansia de se perder e do encontro durável que possa suportar o descabimento, ambos em estradas pouco concretas querendo asfaltar, dar alicerce a vida comum, nao sei se em comum porque isso muito difere conforme os desejos de cada.
    de novo, mais que uma dentro, Fábio. Seu texto é bom, muito bom, falas com alma e coragem, gosto disso.

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  12. Texto fantástico.
    Eu arrisco dizer que não sou um hamster, mas já houve uma altura em que me senti assim. Felizmente, aos poucos, fui abrindo a minha gaiola.

    Quanto à tua escrita, devo dizer que é das melhores e mais completas que tenho visto por esta comunidade.

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