"A vida é como um sonho; é o acordar que nos mata".
(Virginia Woolf)
Logo que se firmava o sol, ela acordava. Abria os olhos, e rapidamente deixava a cama, explicitando o seu descontentamento por dormir além do permitido. Estava atrasada, como sempre. O tempo, segundo sua percepção, era um senhor implacável, um negociante inflexível. Assim sendo, apressava-se em pôr organizadamente todas as suas atividades diárias.
Antes dos afazeres, porém, caminhava até o portão da frente para conferir sua caixa de correspondências. Apanhava os envelopes, abria-os, e logo estava a sorrir ou a chorar com os enredos registrados no papel. Depois, punha-se a fazer curvas no interior da casa, indo de um lado a outro, julgando-se a mais atarefada das mulheres, limpando, mudando objetos de lugar, com estratégia e cuidado, como se fossem peças num jogo de xadrez. Os relógios, espalhados por todo o ambiente, impunham-se como sinais de trânsito, como juízes inquisidores de suas ações, atirando-lhe flechas de prazos e atrasos. Olhava-os, evitava-os, e rapidamente iniciava outra atividade. Não poderia parar. Nunca.
Era isso: ela aparecia vivendo assim, desde as primeiras horas, entre os despertos raios da manhã e as lacunas adormecidas dentro de sua mente. Sem saber os caminhos e as saídas, entretinha-se com vassouras e ferros de passar, fingindo-se preocupada com as exigências do seu dia. Inventava esse caminho de ter o que fazer até que não mais houvesse o que pensar, e não cansava dessa fuga. O que se comenta acerca de tal alheiamento é que ela guardou a última lembrança de existir no sótão, para que não desse com o peso de ser nas horas.
Nessa falta de luz interna se amplificaram as ausências, todas, e, ali, sem dia certo, data, sem ar, só mesmo uma desistência de vida cabia. Quando depois do sol, concentrada, escrevia cartas na varanda, para que no papel pudesse tornar-se personagem principal de alguma história. Nas linhas relatava as novidades do dia, importantíssimas, convinham a uma solidão. Escrevia-as com estreitura e contenções de quem confessa pecados. Antes de deitar, guardava as folhas escritas dentro de envelopes coloridos, e os levava para a caixa de correspondências.
Horas depois, assim que se firmasse o sol, ela acordaria sobressaltada, descontente com a falta de tempo, e repetiria a sua trajetória diária, vassouras, ferros de passar, panelas, coisas do seu sempre. E leria as cartas que recebera, com as quais, sendo ela emissora e receptora, retroalimentava sua solidão. Com o entardecer, estaria concentrada na varanda a lhe escrever novamente. Inventava algum remetente saudoso; depois, preenchia o espaço do destinatário com o próprio endereço. O envelope dormiria na caixa de correspondência, e de lá seria retirado por ela no dia seguinte.
Ainda no portão, acreditando estar surpresa, gritava: "chegou uma carta para mim". Abria-a, e conseguia sorrir absurdamente com as histórias narradas no papel, algo apreensiva, com ânsias de adolescente. Emocionava-se. Os parágrafos traziam as narrativas felizes do seu interlocutor, e ela, atenta, lendo, sentia-se importante, aquela a quem os amigos procuram quando desejam escrever suas aventuras. Lia uma vez, duas, às vezes uma lágrima escapava, denunciando a realidade. E como ainda era manhã no mundo ali, corria ao fogão, apressada em pôr panelas no fogo, pois logo haveria crianças a correr na varanda, a saltar por entre os arbustos do jardim, tudo de muito movimento e vida ao ar livre. Mentira. Não havia criança para uma instalação de luz de dia diferente; até o sol naquela realidade era só ocaso.
A casa havia sido deixada ao que cala e seca, aos caminhos sem ida, e ela era mais impasse que mulher; por isso a importância da leitura em voz alta daquelas cartas ― para que delas reverberasse um caminho diferente, uma saída. De frente para vida, percebendo-se, ela não saberia rumar, dividida que estava entre os dois destinos possíveis do seu dia: entregar-se à história passada, que não mais voltava, ou àquela presente, que não avançava, um ponteiro de relógio quebrado, um mundo sem ir. Somente o tempo, com as chaves de tudo, seguia soberano, a devorar as curvas do depois muito.
Ela fechava as cortinas, pois não queria luz nem horizonte. O de qualquer jeito de sua vida era demais pesado para se levar sabendo. Agora, ela e aqueles objetos abandonados eram uma casa no meio do caminho empoeirado, sem filhos para uma aflição, sem par para um café. Ali ninguém chegava; por ali não se passava. Nenhum viajante perdido bateria à porta para pedir água. Nada barulhava naquela solidão além da porta entreaberta, perpassada pelos dois ventos sobreviventes, confusos. Coisa nenhuma alcançaria aquela solidão, não sob aquelas condições, estando toda ela dentro de sua conflituosa mentira.
A casa fora tomada como fuga; ali ela trancou-se, e pôs cadeados em tudo. Não demorou para que todos esquecessem o caminho que levava àquela mulher, que trancafiou as possibilidades de ir com a vida após ser deixada sem amor ao próprio passo. Dessa maneira, alheia, com o deitar do sol, escrevia sempre. E foi assim até o instante em que deixou de ver-se e de ouvir-se, e, logo, a esquecer-se de ser; mas não morreu quando chegou o dia: preferiu seguir com a solidão.
Guardou-se eternamente dentro das cartas, de todas aquelas que havia inventado e das outras, as que iria escrever, e lá permaneceu ausente de tudo ― dentro da caixa de correspondências. Com a chegada da noite, ela escrevia cartas ao dia seguinte.
Ricardo Fabião (Setembro - 2010)