junho 25, 2010

Estrada para um depois


A intenção dela, mesmo sendo à primeira vista, era estender aquele quase amor para servir de estrada aos dois, ainda que fosse uma trilha breve e estreita, guiada pela leveza dos primeiros olhares. Sorriu, e com a medida certa pediu a ele que acreditasse na possibilidade de um amor guardar caminhos para dois que se encontram na primeira vez. Ela gostava de arriscar, e disso poderia inventar um sentimento que avançasse mais do que deveria, assim, com tardes para um passeio no parque e noites para o cinema que passa os filmes mais românticos do mundo. E tanto amor ela possuía que aos dois bastava apenas que avançassem os dias. E falou, e sugeriu tudo, que quando conseguia amar rapidamente falava sem respirar palavras, sem dar-lhes o fio adequado, feito menina, ausente de controles, só tremores e suores, um acreditar. E por esse sentir quase sagrado ela olhava na direção de amar muito mais depois daquela noite, disposta a montar rituais e dogmas para sua crença de paixão eterna. E ele calado, era de uma luz quase apagada, pois não alcançava aquela diferença que ela tinha de almejar e ser. Ele queria estrada para um ser apenas, e não esperava levar amor para suas futuras manhãs, era deveras pesado. Não gostava de conversa, só a solidão tinha lucro certo para sua tristeza conformada. Contudo, disse 'sim' ao sacrifício de viver ao lado de alguém que acreditava na possibilidade de uma estrada estender-se para dois com duas verdades antagônicas. Então ela começou a gastar o amor para alimentar sua ânsia de mais seguir; e com ele gastava para compensar os buracos provocados pela falta de tudo. E assim foi. Ainda no primeiro mês da relação, em pleno período de apostas, de motor e ebulição, ele decidiu que queria aquele sentimento para si; não de modo a dividi-lo posteriormente. Desejava apoderar-se dele, impor-lhe cadeados. Não mais suportava a forma como ela acreditava nos dois, com a carne em tremores, para sempre. Precisava daquela luz para ver-se completamente; algo faltava no espelho - era só uma parte dele que estava. Veio o tempo, mais esforço investido. Eram seis meses de sentimento utilizado só por ela, escassez de possiblidades da estrada para dois; e ele sempre a evitar esse lugar, nunca na intenção de cúmplice - duas paralelas sob o mesmo instante. Ela de tanta luz e caminhos para lá, e ele de tanto interesse invertido e caminhos para si, que não se enxergavam, que não se descobriam. Então outros meses vieram, e toda reserva de amor que ela possuía foi gasta, esvaziou, balão furado, fim da linha. Como então seguir por dois sem uma medida larga de acreditar? E foi no dia escolhido por ela para sugerir mais estrada e mais amor para os dois, que ele não quis mais ouvir, e contra a parede exigiu dela o tesouro guardado, todo o sentimento, as chaves de ser feliz, mas ela não soube transferir como ele desejava, talvez estivesse na alma, um acreditar de dentro. Ele roubaria aquele amor para negociá-lo, para degustar sob sua escuridão, até que se fizesse luz. Tomou nas mãos a faca com a qual procurou bruscamente o tesouro, no peito, com loucura, onde ela guardava as últimas batidas daquela crença de ser. Tudo profundamente indo, lâmina e intenção. E foi tamanho o susto dele ao deparar-se com o desenho da jovem caída sem vida aos seus pés: onde deveria estar o coração havia um buraco; estava vazio...

Ricardo Fabião (Junho - 2010)

Texto para o desafio de Junho - Fábrica de Letras
Tema: Estava vazio...

11 comentários:

  1. Olá Ricardo, quando alguém me visita pela primeira vez e não só, costumo dar uma espiadinha pelo cantinho desse alguém. E tudo pode acontecer, nuns entro devagarinho sem ninguém me ver e saio da mesma forma, outras vezes fico rendida de imediato e logo no primeiro texto. Foi o que aconteceu aqui! O Ricardo movimenta as palavras magistralmente, joga com elas poeticamente, num maravilhoso emaranhado de sentires...
    A sua história além de muito boa, tira o fôlego! Parabéns!
    Abracinho

    ResponderExcluir
  2. Ricardo, já gostei dESDE O título e imagem escolhida e o texto foi muito legal! ADOREI!UM GRANDE ABRAÇO, TUDO DE BOM,CHICA

    ResponderExcluir
  3. Que forte e melancólico ao mesmo tempo. AS palavras aqui vão fazendo curvas acetuadas e perigoas, nos predendo a atenção até um final imprevisível...


    Beijos meus!

    ResponderExcluir
  4. Sempre surpreendente a sua escrita.
    Tantas "curvas" que me tiram as palavras.
    A imagem, perfeita!
    Um abraço

    ResponderExcluir
  5. "...não alcançava aquela diferença que ela tinha de almejar e ser..." Desta curva, pode-se observar o mundo. Estou encantada com tudo que li em seu blog. Convido-o para tomar um chocolate comigo, e, pretensiosa que sou, espero que vc goste e resolva seguir-me também.
    Uma semana sem limites para vc.
    Beijos.

    ResponderExcluir
  6. Adorei o fim, soa a "mind trap", a imprevisibilidade é sempre uma fantástica aliada num fantástico texto!
    Deliciei-me a ler, mas a imagem suscitou-me a curiosidade daquilo que o terá levado a escolhê-la. Porque não é, à primeira vista, a que saltaria à ideia, e, num segundo vislumbre atento, muito encerra, e o que conta é o que achamos que nela cabe, depois de lermos o que lemos.
    Adorei o seu canto. Poderei segui-lo?
    Beijo.

    ResponderExcluir
  7. É isso mesmo...esvaziam por aí os corações e se enganam que não o fazem, ou o fazem por querer, porque alguém talvez já os esvaziou antes...emocionou-me Ricardo...que amar é querer amar; e coração cheio é coração crente de amor, desejoso de amor, que rompe o peito e transborda no compartilhar de momentos vários e de olhares cúmplices...
    Beijo

    ResponderExcluir
  8. Meu amigo, que texto maravilhoso.
    Quero registrar a minha satisfação em lê-lo e, ao mesmo tempo tê-lo como companheiro nessa estrada sinuosa e grávida de literatura.
    Muita paz pra vc.
    Um abraço!

    ResponderExcluir
  9. Maria Teresa...
    agradeço-lhe a visita e as palavras;
    esteja à vontade para retornar.
    Abraço.

    Chica...
    é sempre muito bom tê-la por aqui.
    Beijos.

    Ava, querida...
    fico feliz por teres gostado.
    Beijos.

    Fê...
    surpreendente também o olhar atento
    de tão boa leitora.
    Todo grande poeta é grande leitor.
    Abraço.

    Angel...
    deixou-me feliz tua chegada, assim, de repente.
    Seguir-me? Claro. Eu é que agradeço por isso.
    Beijos.

    Keila...
    receber um tanto do teu olhar em meu texto
    já me deixa feliz; e depois, com essas
    palavras, isso se agiganta.
    Beijos.

    Jairo...
    andaste sumido, rapaz.
    Estou aguardando nova postagem
    no 'Palavradiando'.
    Seus comentários são sempre
    inspiradores.
    Abração.

    Ricardo.

    ResponderExcluir
  10. Meu amigo Ricardo,

    que conto perfeito! Se eu não tivesse acabado de atualizar o meu blog, pode ter certeza de que esta preciosidade literária seria o meu post de hoje! Mas outros dias virão...

    Beijo grande,
    Ane

    ResponderExcluir
  11. A primeira vez aqui ...
    E FALO-TE BEREVEMENTE SOBRE AS CURVAS DAS PALAVRAS...
    -ELAS TEM?ENTÃO QUERO ESTAR...

    BICHO SOLTO NA POEIRA DA ESTRADA.........

    ResponderExcluir

Fogo obsessor

                 A velha placa de metal com os dizeres “A mulher que tudo vê e ouve, e que de todas as coisas sabe” estava na parte super...