outubro 29, 2010

Por uma diferença inteira



Para Oscar Wilde,
que não pôde usufruir, plenamente, uma diferença inteira.


Naquele instante desconectado, entre danças sem música e palavras sem som, ele era apenas o menino que não sabia protagonizar uma história de menino como um deve ser. Faltava-lhe o código social. Cansava então disso sozinho, dentro do ar pesado, parado, com sua bola de pensamento mudo a mover-se lentamente sob o queimar da tarde. O pouco barulho que ele produzia em existir provinha do medo de acordar o mundo como ele é, e do temor de permitir a imaginação como ela voa, porque imaginar é ter muito tamanho fora, ficar grande demais, solto no susto que há em ser gente. Disso ele tinha medo. Restava-lhe então calar e tentar pôr disfarces sobre a transparência dos seus desejos. Desse modo, experimentando solidões e silêncios, percebeu muito cedo aquela diferença, que era uma força ainda no grão. E assustou-se.
A partir desse incômodo, pôde finalmente constatar: ser menino é de um cuidado tão assim que só o medo de não ser na medida certa traduz a dimensão. O mundo dita o formato de sê-lo, e não sabê-lo ao certo é menos viver. Mas o menino do pensamento mudo não acatava esse ideário pré-determinado; ouvia as regras e cansava disso, dentro da tarde suspensa, oca de tanto descaminho. Como me encaixo nas coisas? Que tipo de amor carrega um diferente? Enquanto não respondia a isso, chegava a noite, e ter apenas onze anos é de um medo já no começo da existência, um sendo que avança mais fundo com o tempo, e esse afundar é muito escuro quando não há chão para a firmeza do passo. Corria então para o quarto, com o coração fora das horas, desejando encontrar-se consigo. Lamentavelmente, ali o silêncio logo ampliaria a sensação da diferença – algo que só cresceria para muito distante do seu entendimento. Punha-se à frente do espelho, despido, vencendo as máscaras da matéria até enxergar-se completamente; todavia, lá, muito dentro, morava uma voz que não era a sua, mas era. Acenava em vão, e não se reconhecia.
Deitava. Ficava de contar minutos, apenas respiração, na penumbra parada entre tomar conhecimento de si e aceitar-se. E logo sobrevinha a bola de pensamento mudo:  quantas dúvidas comporta uma vida tão pequena? Puxava o lençol, e tomava todo o impasse para esconder dentro dos seus medos, isento de cores e alegrias. O dia seguinte seria novamente o percebimento do desvio, e assim o sempre. Não havia régua que o medisse, não havia chão em que aprumasse sua transparência disfarçada; seu código era outro, seus brasões, sua ânsia, seus ímpetos. Seu suor seria derramado por outro sacrifício quando chegasse a hora. E assim permanecia a incerteza: eu vou com isso?
O mundo a repetir que meninos são meninos como meninos devem ser conseguiria converter sua diferença em sensações de semelhança? Haveria tal força? E a menina dentro dos seus olhos, refletida no espelho, quem era? Com o traço impreciso de gente pequena rascunhava na mente o mundo como sendo uma imensa bola hermética, onde códigos e leis têm mais protagonismo que pessoas. E, percebendo-se, concluiu que a diferença é uma bola ainda maior, da qual todos fogem a calcular que ali não há caminho para conduzir um bem-estar. Poucos querem arriscar permitir outras estradas; é mais cômodo reproduzir os conhecimentos e desconhecimentos do mundo,  e simplesmente seguir como a maioria faz. Ele, no entanto, tão deixado ao acaso, não tomava caminhos por não saber ao certo o formato condizente do seu ser - um desviado, dançando sem música, dentro da vida que nunca passava.
Tudo assim percebido doía baixinho no início do sono, sob aquele lençol deslizante que nunca cobria. Ele lamentava. Depois viriam outras manhãs para o cumprimento dos calendários. Ao mesmo tempo, cresceriam os silêncios, e assim outro enorme cinza se transformaria em tarde, e a tarde não traria solução para a menina dentro dos olhos no espelho, e depois noites inteiras reforçariam o conflito. A diferença levaria o menino a dançar sem música, a compor lamentos sem doer em lugar certo. Seria interessante experimentar o vão completo do desvio, mas, depois dos cálculos reais, ele compreendeu que era incerteza demais para o tanto de normalidade que circundava o seu mundo.
Numa certa manhã, utilizando diversos disfarces, conseguiu trancafiar a diferença dentro de algum ponto inativo de sua mente. Para concluir o processo, maquiou gestos, travou braços e deixou de ouvir a música que o fazia dançar. E temendo que a diferença lhe escapasse pelos olhos, passou a evitar espelhos. Em seguida, deixou emergir de si um ser inventado, que passou a distribuir sorrisos que diziam “sou normal; aceite-me, por favor”. O restante da história não demorou a ter encaixe. aquele fio em que se ouvia uma voz suave pôs timbres graves, masculinos, e logo passou a soar aos outros uma pessoa diferente. A imensa bola hermética do sistema que ali passava no sempre, superlotada, com o mundo dentro, no caminho que deve ser, parou na primeira esquina, e ele entrou. E foi muito bem recebido por todos; afinal, a diferença foi silenciada.
A partir disso, com os ímpetos  deixados às grades, um bem-estar inventado passou a contar a sua história: "Estão vendo? Eu sou normal". Contudo, por estar um disfarce constituído de forças antagônicas, há quem encontre nisso mais de um final na história.

Ricardo Fabião (Outubro - 2010)

Texto para o desafio de novembro - Fábrica de Letras
Tema: Transparência

A imagem "O menino e a boneca" é da autoria de Graça Martins;
disponível na página  

outubro 02, 2010

O segredo da tarde sem luz



Tudo começa com a chuva de algum dezembro, assim inesperada para o tamanho do dia. Para os que dividem o instante isso desce além das necessidades, pois não excede alguns baldes a sede das plantas, nem comportam mais que dez minutos de água caída as ruas e as praças. O que molha depois disso impõe ilhas ao dia, desmonta projetos humanos. E como há desvios nisso, imaginemos uma casa no meio de tudo, e dentro uma cara de menino impossibilitado na janela da sala; depois, lá fora, com um amarelo de vestido sob a tarde, a menina da história, que corre com a mãe até alcançarem o primeiro portão aberto, e logo uma varanda, que serve de abrigo até que não haja água demais no céu para seus trajes de sair. Calculemos agora a intenção do destino: o menino corre até a cozinha, mãe, há intrusos em nossa casa. Da janela, porém, eles logo compreendem menina e mãe, pessoas que vêm com a chuva, que logo retomam seu caminho, não há problema em acontecer numa varanda de empréstimo. Lamentavelmente, é natureza da chuva não corresponder às horas e aos desejos, e o tempo avança ali. Então fica bem oferecer uma fatia de bolo à menina com quase oito e à senhora com algo depois de quarenta, que não representam perigo. Elas entram, boa tarde, então as mulheres se reconhecem de algo antes, e nisso elas se inserem como se fossem velhas amigas. Os dois menores, silenciosos, de olhos na diferença, buscam outra linguagem, a da desconfiança, da confirmação de posse do território, o ajuste de forças que sempre determina o instante seguinte. Sentam-se e comem de olhos no impasse. Quando o assunto das mães torna-se muito adulto é melhor dizer às crianças que sejam crianças em outro lugar. Sejam. Elas procuram lugar, procuram, procuram, e, de tanto que são crianças, identificam quintal e chuva como a melhor das possibilidades, sejamos então felizes. Assim, com meias roupas, as de baixo, sem cálculos disso, eles entram no mundo molhado da tarde sem luz; deixam-se aos saltos, aos impulsos, imaginam piscinas nas poças lamacentas, arriscam abraços, ensaiam olhares, percebem-se, correm, sorriem, caem, misturam-se aos cheiros do chão. Ele a beija na face, sem entendimento, sem medidas de fazer, entretanto, considera mais estranho todo o resto, o impedimento, pois logo ecoam os gritos das mulheres, um, dois, três, muitos; ele toma palmadas e ela é arrastada pelas ruas com o vestido amarelo na mão. A família da garota, gente que responde bem aos ditames da década de 50, deixa o bairro no dia seguinte, certa de que esquecer completamente é caminho possível. Depois disso, como sabemos, o tempo transforma crianças em adultos, desvios em segredos. Hoje, eles não se conhecem, não lembram mais o fato; afinal é apenas uma tarde no meio de todo esquecimento necessário ao vivente. Todavia, não sabem dizer ao certo por que gostam tanto do cheiro sem luz da chuva - algo que futuro nenhum pode transformar em pretérito; conjuga-se sem verbo, alheio à consciência, em eterno presente. Não passa.

Ricardo Fabião (outubro, 2010)

Texto para o desafio de Outubro - Fábrica de Letras
Tema: O cheiro da chuva

Fogo obsessor

                 A velha placa de metal com os dizeres “A mulher que tudo vê e ouve, e que de todas as coisas sabe” estava na parte super...