abril 20, 2010

Janela para vazios





Para Margarete e Alômia

Quando ele se tornou vizinho começou a manhã.
Antes disso em uma noite cabia tudo que havia.
A família do lado veio com aparatos e quadrados,
E com tecnologia de ponta e plantas de plástico,
E tudo ansiavam de um viver fora e longe de si,
Cada qual seu destino de ilha: mãe, pai e filho.

Essa impossibilidade escondeu a chave dos três,
E com cadeado as palavras só diziam por dentro.
O vizinho quis sorrir de amigo aos daquele lado,
Mas sorriso é algo que os três de lá não puderam,
E não viram. Puseram muito silêncio por entre,
E assim aconteceu esse vazio entre as casas.

E o vizinho ficou de olhos ali por trás de tudo,
Com uma tristeza que só entendiam as estrelas.
A vida doía então absurdamente geométrica:
O pai quando caminhava descrevia triângulos;
Às vezes ia muito baixo, às vezes alto para lá,
E ninguém calculava os lados desse mundo.

A mãe tinha pés que desenhavam losangos;
E havia rugas contra as esquinas de sua manhã;
Por isso camuflava gritos com jóias e perucas.
Era mulher de muito arrumar, de pouco sorrir;
E ninguém acompanhava seu triste caminho.

O filho tinha círculos esverdeados no que era,
De onde avançava um vazio mudo como bola;
E rolava no chão que era só reto e não se via,
E não encaixava olhar nos três ângulos do pai,
E não acertava ser nos quatro pontos da mãe.

Assim o tamanho desse lar era um cubo fechado.
Com sinais vermelhos nos corredores e quartos,
E janelas que só mostravam tudo ao invés assim.
E no jardim as cores tinham vazios quantizados;
E o mundo era imaginado só de depois e acolá.

Mas o tal vizinho trabalhava com giz e apagador,
E gostava de sorrir da vida e sabia os segredos.
E foi convidado a rabiscar desenhos-de-ser-feliz.
E riscou no ar um sobrado com desmedido azul,
E zeloso girou os rumos onde todos pudessem ir:

Fez quarto com todas as formas para o menino;
E dois tantos da mesma providência para a mãe,
E as chaves para que o pai abrisse aqueles lados.
Desfez as linhas que não brilhavam nos olhares,
E desenhou curvas mais para cima nos sorrisos.

Com giz e segredos retornou ao ficar de vizinho.
E correram os três para a casa dentro do azul.
E tentaram eufóricos os desenhos de conviver.
E houve festa de enxergar o outro e até suportar,
Pois tinha mais azul ali do que no mundo todo...
Mas nem toda casa azul tem suavidade de céu:

O pai passou a receber visita que não se sabia;
E com caminhos demais a mãe deixou de voltar.
O menino a olhar círculos, triângulos e losangos,
Mas não compreendia a insistência dos silêncios.
E de tanto desencontro que um cinza-mudo veio.

E quando falavam só se ouvia rabisco enroscado;
E tanta mágoa se deu que a noite nem dormiu lá;
O sol perdeu a hora de acordar o resto do tempo.
Com isso o azul virou uma calha e molhou tudo,
E não teve sossego que ali arrumasse as cores. 

E da janela ao lado o vizinho calava tristeza só,
E era apertado como olhava a casa e o apagador.
E com essa tristeza rasgou em duas voltas assim,
E já no lugar era só o fundo do mundo que se via,
Costurado no pano que cobria o tamanho do céu.

No lugar da casa, onde restaram mudas de azul,
Riscou um abismo com larguras de um “v” vazio,
E fez-se o chão que ia mais longe do que não ver.
E foi assim que quis manter sua casa de vizinho: 
De cara com um silêncio de tamanha distância.

Nos dias em que mais doía a incerteza de gente,
Ele brincava com as estrelas de ser mais mudo,
De ser menos humano para ser mais do abismo,
Do fundo disso. Mas guardou consigo as cores,
Para pôr nas janelas quando quisesse outro dia.

Ricardo Fabião (Abril - 2010)

Texto para o desafio de Abril - Fábrica de letras
Tema: Abismo

Edgar Mueller é conhecido por fazer pinturas tridimensionais em ruas (3D Street Art).
O abismo acima é de sua autoria. 

3 comentários:

  1. Gosto do trabalho de escrita envolvido neste texto. Boa participação na Fábrica..

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  2. Vejo uma mensidão vazia, pessoas sem o gosto pela vida, sem o colorir de si, vejo muitas pessoas nesse texto, e uma delas sou eu. Que aos poucos está assim ...

    Eu agradeço muito pelo seu comentario, sempre consegue me entender não pelas coisas obvias, mais sim pelo sentido.

    A cada vez mais, eu me orgulho de vc !
    Muito Obrigado.

    Abração!

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  3. Olá Ricardo! Hoje é terça-feira, uma correria. Não repare em minha visita relâmpago, mas venho lhe convidar para ler o novo capítulo de “O Diário de Bronson (O Chamado)” e deixar o seu comentário.

    Retornarei com melhores modos e mais tempo. Tenha uma ótima semana. Abraço do Jefhcardoso!

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