Pode o autor ter predileção por alguns de seus textos?
Se me for dado tal direito, eis abaixo um deles.
A Victória, minha filha,
pela diferença que nos uniu
em tudo eternamente.
Zafina sofria de esquisitice, de estranheza completa, um desajuste brabo, tão assim sem remédio que nem sete rezas em noite de lua cheia deram jeito; recomendaram em vão. E como não havia nome para o mal, nem tolerância às diferenças, ela tornou-se a aluada da cidade, a desandada, uma tristeza. Como resposta, no entanto, a garota apenas olhava, sorria inocentemente, mas adentrava o pensamento dos que se aproximavam, invadia as falsas verdades, desvendava as intenções ainda na alma.
Estranho. Assustador. E não havia quem pudesse com o peso daquele olhar, tanto que desde o nascimento negaram-lhe qualquer possibilidade de afeto. E ela, algo assim calada, parada diante das paredes, olhava-as demoradamente, quase aos sorrisos, como se naquele vazio encontrasse uma saída para o seu descompasso. E foi por medo, por temer a escuridão encontrada na alma das pessoas, que decidiu não mais falar. Que palavras podem ser ditas aos que só se contentam com as próprias palavras?
Havia começado as letras mas nada escreveu em cinco anos de chance. Sua única produção estudantil foi o desenho em que rabiscou uma família feliz: uma mãe que ama a filha e o filho, um pai com um abraço em que cabem todos, um irmão, e juntos no mesmo amor com um sol lá em cima para todo o sempre. Contudo, dinheiro empregado exige resultado em troca, e, sem leitura, sem escrita e sem avanços, a menina não valia os investimentos. Assim, sem demora, tiraram-na do colégio: num dia estava lá, no outro, trancada em seu quarto.
A natureza tem dessas invenções, alguém tinha de ser Zafina e a pequena nasceu justamente assim. A família estranhou. O que é isso? Bem, aparece uma em cem milhões, o médico do posto de saúde foi categórico, mas dá para suportar, não surta, não contagia, e não mata, apenas é esquisita. De que jeito, doutor? Segundo minha experiência, ela não se irrita, não deseja o mal, possui todas as virtudes; tudo que faz e gosta e sabe é olhar, muito lá dentro, no viés da alma, e descobre suas imperfeições e relevos. É difícil de aceitar, suponho, mas ela possui também habilidade para amar incondicionalmente; isso talvez amenize o pesar da estranheza. Ameniza nada, estamos convencidos, ela é realmente estranha, somos uma família tradicional, não podemos com tamanho estorvo. Como alguém pode apenas olhar, amar e lidar com a verdade? É muito perfeito para ser humano legítimo, não sobrevive, não dá certo no caminho, sou mãe preocupada. E a sociedade?
Decidiram então manter Zafina em casa, sob cuidadosa vigília, quarto separado, remédio controlado, horário para entrar e sair, essa coisa de só olhar e sentir amor é perigosa, ninguém sabe que rumo toma, cuudados são necessários. Os talheres foram marcados, a lavagem de sua roupa feita em outro tanque, a doença é rara, sabe-se pouco sobre contágio e tratamento, somos uma família que não arrisca desvios de conduta, há um brasão sobre nossas cabeças, a mãe repetia, mas veja, ninguém é desumano, aqui ela é bem tratada, há um rádio para distraí-la. Com o tempo avolumaram-se as migalhas de zelo daqui e os silêncios de lá, e Zafina cresceu. A serenidade permaneceu, o olhar firme, perfurador, o sorriso dentro de si e a clarividência, e isso incomodava os mais próximos, que eram, no mínimo, distantes. E com a força do abismo que faceteava os dois lados, vieram os meses e os anos.
Ela tinha vinte e três quando Fabrício, seu irmão, procurou-a numa certa manhã. Ele todo sorriso, quer ver como é o mundo? Zafina toda esperança e feliz, com palavras ditas para dentro, só de olhares, vou ver como é o sol do longe, conhecer o mar, talvez um vestido novo, tomar sorvete, pensamentos. Sim, você vai ser livre, o irmão era convincente, tinha de ser, havia projetos em sua mente, grandes segredos, um circo, uma atração assim “o olhar que tudo vê”, bilheteria, sucesso, dinheiro, era só esperar. Você trabalha para mim, e eu cavo sua liberdade. Combinado. Mãe, eu levo Zafina para morar comigo, lugar distante, e não voltaremos, a razão ele omitiu, não se preocupe, melhor assim, que ela dirija seus olhos para quem os deseja ver, e saiba que saudade não é bem-vinda neste contexto. Ficaremos muito bem.
E aconteceu: um trem, uma estação, um rosto virado de pai, uma boca torta de mãe, um lamaçal de primavera chuvosa, um rádio apertado nas mãos, um olhar a mais, um amor a menos, abortado, já sai, já foi, e depois uma porta, um vagão, os trilhos e a manhã gelada. Os acenos espalhafatosos jogados por Zafina ricocheteavam na frieza do casal estacionado na estação, silenciosamente satisfeito por dar destino a um impasse de duas décadas. Fizemos nossa parte, vamos para casa. Voltaram ao resto da manhã, dentro da cena muda, que era o início do vazio que guiaria suas vidas adiante. O trem partiu.
Era já um terço da viagem quando ele reparou despropositalmente nos olhos da irmã. Não nos conhecemos. Como é apenas olhar? Não responderás, eu sei. De que lugar vieste assim tão diferente? Segundo o que aprendeu Fabrício, ela era perigosa, um castigo, aquela que jogou o nome da família no ralo, tanto que durante toda sua vida ele tratou de não entendê-la como irmã. Ela, alheia à inquietude daqueles questionamentos, só sabia a felicidade que era o chocolate em suas mãos. Não media a dor do passo que ia na direção contrária das coisas, por isso sorria para o desenho apressado das montanhas no lá fora, para o tamanho do céu, e escutava mais alto o mundo que só ela compreendia. Você tem lindos olhos, minha irmã, o que há de errado com eles?
Aquela jovem mantinha o rádio no colo como quem tem as chaves que abrem a caixa da alegria de uma vida inteira, era seu único companheiro até ali. Ele pousou o olhar sobre essa cena, o que fizemos a ti? Zafina continuava de sorrisos, indiferente ao derretimento de sua vida, do chocolate, a sujar-lhe as mãos, o destino, deixada de qualquer jeito ao pé do instante seguinte; sim, talvez não coubesse neste mundo, e certamente era feliz por não saber que seria infeliz se soubesse como era ser. Então algo revirou dentro de Fabrício, uma náusea, uma saudade de algo que não conhecera, coisas que iam e voltavam, talvez o engasgo a tomar outro caminho, tornando-se respiração livre, portões que se abriram, água jorrada depois de represada, inundação. Ela virou-se para ele, os olhares bateram-se demoradamente, um minuto eterno, e ela não disse, que não precisou, e ele ouviu tudo, paralisado entre contemplar e lamentar, por ela e por ele, pelo mundo, pelo abismo entre os dois, pelo medo, pela fragilidade humana, pela maldade. Esse (des)engasgo todo era efeito da verdade deflagrada pelos olhos da irmã. Tudo ele diria se soubesse, mas palavras são instrumentos de uso complicado, e, recém-chegado de um longo silêncio, só coube na sua voz olhar, doer, lamentar. E, silenciosamente, isso levou muito mais alma que morrer.
Enxergar-se foi caminho que ele não soube administrar para um depois. Acostumara-se desde menino às meias verdades de sua família; de modo que uma verdade inteira trouxe luminosidade demais, desencadeou sensações controversas, interditou seus planos, teria que improvisar um desvio.
Horas depois, a irmã dormia dentro do vagão gelado, com seu sonho de azul e calor, e distante consigo só. Apenas uma incerteza de madrugada chamava por ele lá fora. Assim sendo, desceu na estação seguinte. Duas malas estavam ao seu lado quando o remorso o tomou para sempre. O trem partiu lentamente, fazendo curvas e buracos naquele resto de noite. Deixou ali o cinza-escuro do impasse e o homem da lágrima silenciosa.
Zafina acordou. Levantou-se. Isso foi quando o movimento da janela mostrou-lhe como era calada e triste uma imagem de irmão deixada para trás. Sentou-se. Sorriu alheia, sem cálculos, sem destino. Ligou o rádio. Comeu outro chocolate perto da manhã.
Ricardo Fabião (Julho, 2007)