julho 25, 2009

Coisificação (conto)


Em certas ocasiões ter poucas conexões com o mundo pode ser algo satisfatório; primeiro não há quem direcione os passos, ou ainda quem ponha cercas ou censuras aos ímpetos e estalos do sujeito. Viver desancorado deve render alguns imprevistos; em qualquer lugar o fulano baixa, quando se quer vai, quando se desiste não se dá satisfação. Segundo, goza-se de liberdade para fixar preços, para negociar a própria alma da maneira mais compensatória e ir até o fim com isso. Era o que calculava Sidney, tentando justificar a escuridão na qual se metera. Logo estaria encarcerado, dividindo os dias com gente de pouca esperança, enfim, pegou a rua reservada para seu destino. De fato, a vida oferecera-lhe um emaranhado de relações complicadas desde o nascimento: pai e bebida, mãe e adultério, irmãos e abandono, daí não demorou até que o determinismo o nocauteasse; quando se levantou recolheu para o resto de vida apenas o que lhe parecia identidade.
Com esse olhar de menos, Sidney aprendeu o mundo: evitando o lado mais ao sol das coisas; preferia meter-se desconfiança adentro e calcular os cifrões que poderia extrair das pessoas e das situações. A quantia almejada, no entanto, não chegava. Não era falta de prática, já que desde a adolescência andava de planejar seus passos, de contabilizar apertos de mão, talvez procurasse em lugares indevidos, falta de sorte, destino. Havia dispensado a possibilidade de amigos e emoções, o que valiam? Sua meta era algo seco, buscar no futuro o que faltara no passado, por isso equacionou pessoas, atitudes e até uma educação básica, que concluiu graças aos sofisticados métodos de cola e algumas doses de ‘persuasão física’.
A partir disso, pensou, algo acenderia no caminho, mas como desconstruir sua relação com a escuridão? Foi calculando um pouco de luz que concorreu a uma vaga de auxiliar de necrópsia do Instituto Médico Legal. Para isso optou por um certo gabarito negociado, valor pago boa parte com alguns instantes de corpo ― o vendedor das provas propôs, gostava de homens infelizes, que sorriem pouco e que não recuam diante do combinado ― Sidney aceitou, cumpriu o trato e passou no concurso. Deu entrada naquilo que julgava ser destino diferente: dinheiro obtido com trabalho. E apostou noites e madrugadas nisso.
Entretanto, luz é força que evita encontros demorados com Sidney. Depois de quatro meses de relação intermitente era natural diminuir a intensidade, às vezes apagada, noutras acesa, até escurecer de vez. Era madrugada. Ele fumava escorado na distração de uma pilastra quando um corpo foi levado para a sala de autópsia. Rapaz, finalmente uma celebridade baixou aqui, venha ver, Sidney. Deixa o presunto em cima da mesa, neste momento ele vale tanto quanto um rato de esgoto. Não vou jogar metade do cigarro fora por um defunto, nem que seja famoso. Aproximou-se do corpo. Vamos ver de quem se trata. Sidney abriu o saco plástico, ora, quanta honra, é brilho demais para um fim de noite.
A surpresa era Cyro Power, estrela internacional do boxe, cinco milhões por luta, esquerda mais ágil da temporada, músculos de ferro, tudo agora deixado sobre a frieza do alumínio, indefeso, posando alheiamente para as últimas fotografias, de tristeza e inchaço conferidos, anotados no caderninho do auxiliar de necrópsia, você nem imagina como a direita do legista é rápida, campeão. Terminamos as fotos e as anotações, agora o banho.
Instantes depois, sozinho, diante do corpo do famoso pugilista, a duas horas da chegada do doutor, Sidney liberava seus pensamentos: quanto vale uma esquerda de boxeador famoso? Como fica minha vida se eu partir para coisa diferente? Poderia vender o homem inteiro, há colecionador para tudo, conheço um atravessador para repasse dos produtos, é sujeito que desconhece compaixão. Poderia fazer dinheiro com o pênis, com os pés, até com a direita acanhada do lutador. E o resto? O que faria com o resto? Ele é muito pesado, não poderia carregá-lo nas costas, não tenho carro, fugiria como? Chegaria até a rodoviária? Tive uma ideia, que ideia, rapaz? O médico chegou mais cedo, vamos trabalhar? Estava admirando o boxeador? Era dos melhores, não? Sim. Então bisturi aqui, agulha ali, linha, torneira, água, porém, num desvio de olhar do legista, ele puxou algo e jogou embaixo da mesa de autópsia, eu costuro, doutor, tudo bem, vou tomar água, já volto, Sidney conferiu o que havia jogado, meninges? Mas sendo de gente famosa elas devem ser valiosas, pronto, tudo limpo, você trabalhou bem, suas mãos são muito ágeis, daria um bom legista, obrigado, doutor, até mais, agora a gaveta gelada, adeus, Cyro.
Fora do instituto, ele ligou para o atravessador, tenho algo do boxeador famoso. Do Cyro Power? Venha agora, vamos fazer negócio, chego já. No caminho, ele relembrava a cena na sala de autópsia. Será que o doutor viu quando peguei as meninges? Pode ter disfarçado para evitar um confronto comigo; faria a denúncia depois. Creio que não, até me elogiou pelo trabalho, o doutor é muito amável, se tivesse visto teria me chamado e dito algo, agora é tarde, após a curva chegarei à casa do negociante. Pronto, agora eu bato. Entre, mostre-me. Membranas? Ninguém vai querer pagar por esse troço, pensei que traria a esquerda do campeão. Não faça isso comigo, arrisquei meu emprego por isto. Nada feito, rapaz, porém estou curioso, como conseguiu driblar as câmeras da sala? Câmeras? Não sabia que havia câmeras na sala. Não sabia? Você é de que mundo? Claro que há, agora saia e leve essas membranas com você; com sorte, conseguirá no caminho um cachorro que dê um jeito nelas, outra coisa, você tem sangue até nas sobrancelhas, mude ao menos a blusa para evitar suspeitas. Tem muito que aprender, não passa de um amador. Sou mesmo, mas pode ficar com isto, eu termino aqui.
O negociante pegou as membranas deixadas no chão, cheirou-as, examinou-as detalhadamente, meninges de Cyro Power devem valer uns duzentos. Foi o que conseguiu telefonando, enquanto Sidney era um resto de vida esquecida no ponto de ônibus. O celular tocou. O médico. Decidiu enfrentar. Sim, eu mesmo, como? As meninges do boxeador? Quem faria isso? E as câmeras registraram algo? Desligadas há dois meses? Sidney suspirou aliviado, que sorte, pela primeira vez. Enfim, a vida começou a pagar o que me deve. Isso mesmo, rapaz, minha preocupação é porque elas estavam muito infectadas, Cyro contraiu uma meningite rara e letal, de alto contágio, não devem ser tocadas, liguei para isso, fique tranquilo, sei que não foi você, obrigado, doutor.
Depois disso, a manhã prosseguiu com três sorrisos: o de Sidney, o do médico e o do atravessador.

Ricardo Fabião (Julho, 2009)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Fogo obsessor

                 A velha placa de metal com os dizeres “A mulher que tudo vê e ouve, e que de todas as coisas sabe” estava na parte super...