Não enxerguei Renato nos meus primeiros olhares e ouvidos dirigidos a ele. No início, houve uma certa resistência da minha parte. Não queria acreditar que o roqueiro sabia realmente dizer as coisas. Deparei-me com uma legião de fãs dançando daquela maneira 'estranha', e deduzi que a música “somente” completava o ritual. Puro modismo - eu dizia. Era mais que isso. Pessoas menos mesquinhas acordaram antes de mim, e não sei se por imposição da época, ou não, enxergaram o compositor. Quem o alcançava, por ele se apaixonava. Leila Pinheiro abriu os meus olhos - por que não dizer todos os meus sentidos? - para o compositor. Aprendi com “Tempo Perdido” a “lembrar e a esquecer como foi o dia, antes de dormir”. E segui com essa lição, já me sentindo mais urbano, como o restante da legião. Léo Jaime, sempre muito irreverente, conseguiu me surpreender com a interpretação de “Índios”. Acompanhado de violinos, trouxe “de volta todo o ouro” daquela obra. A gravação, mais nítida que a do próprio autor, pôde me traduzir um pouco do que era capaz aquele moço “tímido e complicado”, como alguns disseram. A grandeza de sua alma (o “complicado”, talvez, seja-nos entender essa particularidade) se chocava com a pequenez que guia a maioria das pessoas. De tão sensível que era, conseguia se irritar com o mundo, e gritava e berrava. Apelava mesmo, “quase sem querer”. Renato Russo tinha olhos para o mundo. Ele não era daqui, com certeza, nem do planalto central nem do Rio de janeiro. Sua voz invadia o nosso corpo com idioma universal. O brasileiro que se comunicou, e entendeu o poeta, certamente usou uma linguagem silenciosa, de alma para alma. Nu, como esteve sempre, ele aguardava o instante em que o “acaso lhe estendesse os braços, com abrigo e proteção”, mas ele “cansou de bater, e ninguém abriu”. Saiu de fininho, silenciosamente, tão sutilmente que a madrugada carioca nem percebeu. A notícia rompeu a manhã. Bem cedo já havia música de Renato Russo nas emissoras de rádio e televisão. Não vi grandes homenagens em seu nome. Não lhe deram um horário inteiro na Globo. Não tinha corpo de bombeiro levando corpo de roqueiro. O adeus foi discreto. Melhor assim. A paz de espírito que ele tanto buscava não combinava com esse tipo de sensacionalismo. “Mudaram as estações” - disse uma amiga sua de infância na televisão, a frase seguinte da música é muito bem colocada, e todos cantam insatisfeitos: “nada mudou...” É; ele sempre soube que nada era para sempre, porém o vazio em nosso peito idealista nos delata: uma luz a menos neste planeta desgovernado. A minha ligação com Renato Russo é extra. Não me assusta o fato de vê-lo morto hoje, mas a tristeza de não ter trocado duas palavras com ele nesta. Não foram cinco de suas músicas nem um caderninho repleto de frases ditas e cantadas por ele. O elo entre nós não surgiu nos ginásios nem nos discos. É algo que pulsa naqueles que acordam para a diferença: - assim seria o nosso encontro - conversaríamos sobre a vida. A música da qual nos alimentamos seria apenas uma lacuna. Em nosso sentimento de quem busca e acredita, a verdade é o que realmente soma. É isso. Quando o sol bate “na janela do quarto” temos a certeza, como ele, de que não somos apenas daqui; provavelmente amantes da vida, servindo “a quem vence, o vencedor... Só o amor conhece o que é verdade”. O apóstolo Paulo escreveu e pregou, e o país repetiu e aprendeu a melodia - era um grupo de rock falando de amor num ponto qualquer do dial. Amor mesmo! A legião de fãs, urbana e rural, achou diferente, mas cantou. “Quem me dera, ao menos uma vez, a mais bela tribo, com os mais belos índios... não ser atacada por ser inocente”. Renato, eu sei que a sua dor não provinha de doenças. A maldade do mundo, sim, isso o perseguia, e sua imunidade não resistiu. “Vamos dar um tempo, um dia a gente se vê...” Quem realmente escutou e entendeu o seu brado, aqui na terra, sabe que mesmo sendo especial como foi a sua, a vida é uma simples passagem, um parágrafo a mais no livro da eternidade. Rapaz, a saudade é inevitável. Saudade mesmo! Agora quero ouvir, na sua voz, aquela canção bonita “de quem deixou a segurança do seu mundo por amor...”
Ricardo Fabião (outubro/1996)
(Esta crônica foi publicada no Jornal ‘A UNIÃO’ dias após a morte de Renato Russo)
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