julho 08, 2009

Vertigem (conto)


Saí de casa. Alcancei o jardim. Há um verão enorme aqui. Intenso, sem nuvens no céu. Sempre gostei deste azul, da forma como ele se espalha por entre os edifícios, a dançar diante das minhas narinas, das imagens que ele borda em minha alma, de como circula os viadutos, as pontes, coisas que fazem voltas, que brincam com meus olhos, lembranças de qualquer coisa. Aqui tudo acordou sob luz demais, agulha para meu olhos, ainda estou de noite alta por dentro, sentindo frio, cambaleando como um bêbado. Mas falava do azul, cor de fundo das coisas. Às vezes é um ponto pequeno, enquanto repousa na superfície dos objetos, noutras, é o mundo todo, invadindo discretamente as outras cores. Mas não sei bem como é ser azul, só sinto sua presença. No outro extremo está o vermelho, que é um ciclone nos meus pensamentos, via que dá noutra sorte; tem cheiro de ferrugem, pinga sobre o chão e faz bochechos com os meus passos. Vermelho me dá náuseas, sobretudo neste momento, em que sinto suas garras tatuando minha pele com dezenas de traços góticos, sinuosos, assustadores, transformando-me em homem encarnado, pintado com aquilo que me escapa, quantos litros me restam? Minha vida até aqui foi complicadamente vermelha: se é vermelho o que me dá vida, também é vermelho o que a tira de mim. Por isso quis ver a descomplicação do jardim, para imprimir a marca dos meus últimos pés na grama, e gastar um tanto de olhar no desenho desajeitado das trepadeiras, como sobem, para onde vão assim? Aqui nada me cansa. Por essa razão, assim que eu cair, que seja perto das begônias, das petúnias, das orquídeas, murchar ao lado delas, de boca aberta, para que me escape o último sopro e perfure suas raízes, e eu reapareça juntamente com a leva de suas flores. Aqui eu consigo arrumar as cores harmoniosamente, vermelho fica bem de verde, lilás combina com amarelo, azul espalha-se sobre as outras, já disse. Não lembro. Disse? No vão da minha existência a relação entre cores e coisas sempre deu em cinza absoluto. É de onde trago o tom nublado do pouco sorriso e as curvas que evitam o sol. Durante a juventude, houve uma possibilidade de tomar um caminho diferente, uma muda de alegria que recebi de um amigo, mas algo deu errado no cultivo, não reguei adequadamente, não tenho certeza, sequei, secou, estou secando. Cheguei até aqui economizando um 'não sei quê' de vida, mantendo minhas vontades sob o regime de comportas, fugi de gostar de viver, brinquei pouco, respeitei regras demais, cedi espaços além do que deveria para receber tapinhas nas costas, "bom rapaz". Então não sofri de amor, já tinha a vida para isso, não quis, não soube. Por que estou me lembrando disso? Pesado assim, cairei com todos esses pensamentos, onde estão meus passos? Casei-me cedo. Estava nos projetos, era o certo, diziam. Havia dinheiro e idade nos vinte e dois, mas não havia ainda quem me amasse, mas deu-se assim mesmo. Por que não pensar em outras coisas? No momento em que devo lembrar os dias ensolarados, só me sobrevêm os sombrios? E chegamos ao altar: eu, a educação, o mundo e minha família. Assim foi que aprendi rapidamente o casamento, suas regras de renúncia, decorei as lições, viver sempre fora de menos, sabia e aceitava olhar para as coisas sem me enxergar nelas, eu era um círculo, a família um retângulo, nunca me encaixei em abraço de mãe, em olhares de pai, sobrava ali, faltava aqui, rolava, esposa para os dias de dinheiro, solidão para os dias de desejo. Agora, cansado dessas voltas, preciso de ar, já deixei o quadrado da sala, o desespero do quarto, percebo que há um traço torto no polígono previsível da minha semana. O que se desenha com isso? Não sei. Agora, não me dói tanto a carne, mas a sensação de vida sumindo. Onde está o ar da manhã que tanto ar dizem ter? Talvez me reste aventurar na incerteza das ruas, cumprimentar desconhecidos, pisar na lama esquecida, dar adeus para aviões distantes, outra hora, por enquanto um pouco de brisa me basta, o jardim e as cores, o andar vagaroso dos meus olhos. Ah, quero cair discretamente encolhido, não fica bem tombar aberto, de qualquer jeito, permanecer imóvel sobre as coisas, deitado só de pele, na manchete sem vida do dia seguinte, virando comida de leitores curiosos, detalhes do último suspiro, fotografia colorida dizendo que segredos são feios ao sol, a disparar contra as pessoas a cara triste de quem esfria, gente riscada, vermelha, que me cubram então com a folhagem dos arbustos. Não faz diferença, não há tempo para cores, quem se importa com elas? Saí de casa querendo ar, todavia o ar não vem, e as coisas continuam girando, estou murchando. Olho para trás, a varanda é um rabisco de criança, que apaga, que acende, não enxergo os traços amarelos, não tenho olhos para tanta luz, nem força, nem oxigênio, meu pulmão é um balão furado, rodopio, deslizo no jardim, a gritar sem som, a implorar, sem saber como é deixar de ser sem saber, buscando saída, sem buscar, no ziguezague dos meus passos, tropeço nos sentidos, nos antigos sonhos, na realidade, divago e volto, há sol demais aqui, e tudo é pesadamente real. Dizem que o cérebro não aguenta dez minutos tentando um grão de ar, quanto já passou? Vejo o triste homem refletido no vidro da porta. Quem é ele? Tem a minha aparência. Será que sofre menos por ser reflexo? E pulmão furado tem conserto? Remenda-se? Cola com pele? Minhas mãos não chegam até onde seria possível puxar a faca, dá trabalho, é como coceira incomodando em ponto que não se coça. E o oxigênio deixando de entrar, como cessa isso? E as roseiras? Não há mais quem cuide delas. Roseiras? Não há roseiras aqui, só um cheiro insustentável de medos e fracassos, mas é melhor pensar em coisas importantes, porque o tempo está vazando, talvez imagens de pequeninos pássaros, livres, inocentes... Não há mais força, o motor estanca, apaga-se o azul, o vermelho, pronto, tombo sobre os pés de margaridas, enquanto me fitam espécies que eu nunca soube classificar, alheias, confusas, abrindo espaço para meu destino caído, talvez haja tempo para a última reflexão, não, agora o cheiro da terra tenta o último contato com o cérebro, e não há resposta, os fios se partem, a música começa em algum canto, não ouço. Esfrio por completo, despido e espalhado, enquanto meus olhos congelam a imagem da janela do quarto: a transparência discreta da cortina, a mulher, as luvas ensanguentadas. A faca estaria em suas mãos se não estivesse cravada em minhas costas. Agora sou apenas pele, ossos, sangue, silêncio e dúvidas, um corpo no meio do jardim de uma certa casa - excelente prato para a insaciável fome dos vivos.

Ricardo Fabião (setembro de 2006)

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