março 19, 2010

Algo sempre


                                       
                                        Para Mercedes Sosa

A morte não tem cobertor para os sonhos
Por isso no morrendo há que restar o passo,
Indo a lugares onde um morrer nunca invade.
No morto um tanto de viver torna-se carne,
Onde os olhares do tempo estão congelados.
Ali muito de dentro haverá inevitável vida,
Em verde soprar além do branco da porta,
Da última; nem tudo da vida retorna ao pó.

Se a palavra e sua pressa de horizonte,
Se a música e sua onipresença vertical,
Quando cruzadas buscam fundo no infinito.  
E sendo cantar como se desfia uma alma,
E doá-la, muito mais do que sons e gestos,
Depois disso não se volta mais ao começo,
Pois há vida crescendo além desse corpo,
Tomando chão, comendo as mil distâncias,
De rumo onde não se sabe imaginar.

Vida costuma não caber toda num vivente,
Às vezes vaza um viver para outras almas.
E isso avança como ânsias de trepadeiras,
A montar luzes dentro de outras luzes
Das vazantes sobre o sossego das pedras.
Nessa junção, entrelaçam-se os enredos,
E cada enredo, com rabiscos de infinitas pontas,
Lança ramos sobre todas as possibilidades.
E isso cresce
É assim que se vive e se morre sempre:
Sem passar, só sendo...

O poeta, costureiro de mundos, sabe:
Vida dentro de outra, noutra
Tantas, todas.

Juntas, vezes sendo, lidas noutra história,
Fundem-se em formatos diversos de vozes,
Distorções de amores e confusões de cores.
Curva da volta de uns, reta de outro seguir;
Uns que só ficam de muitos que só seguem,
Uns de mato e terra, uns de mar e adiante,
Entrelaçados pois num vivendo de sempre,
Ventre-após-ventre de futuras gerações.

Se um viver espalha-se por vão como fluido,
De certo um morrer sim pode várias mortes:
A que emudece amputada da que fenece,
A que plana desembainhada da que migra,
A que morre ainda que de vida permaneça,
A que indaga seja quanto mais luz se faça,
A que menos passa quando mais voz deseja,
A que aberta contra a distração dos vivos.

Depois disso onde sepultam as frases do fim,
Possa talvez uma fronteira desconhecida,
Um ponto vivo a respirar além dessa esquina;
A lançar sinais de que não se morre havendo
Algo maior que todo seu quando ainda-sendo,
Escorado à porta com um cesto de poesia,
Com voz para entorpecer as dores de um dia,
E alma para conduzir uma distância inteira.

Disso assim restará para os lados a ponte:
Vivos que vão ao morto, este de ir aos vivos;
E a música levando e trazendo a mensagem,
Um sempre.

Ricardo Fabião (outubro - 2009)


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