março 11, 2010

Ancoradouro


Quando enfim tecido meu corpo de poesia,
Não demorará que me encontrem os leitores.
A alguns estenderei a mão e vários caminhos,
E disso criaremos pontes e passagens secretas.
É o modo como opera uma fábrica de espelhos:
Eu projeto aqui e tu me refletes em ti e adiante...
Como de ti há também luz que volta e me ilumina.
Seguimos eu e o meu leitor a refletir novas luzes,
De maneira que não sabemos o chão que elas são,
E olhando para trás não entendemos seu começo.

Somos de nós o lado certo do verso e seu avesso.
Por tudo já dito e para reflexo do que ainda dizer,
Damos ao sentido não apenas o que lhe é cabível,
Mas o que lhe é possível dentro do não-pensado.
As coisas meias todas de sentir deixamos à poesia,
E realçando meia intenção minha e meia de leitor,
Com mais meias de quem for de aventurar partes,
Saber-se-á que uma poesia inteira ou em pedaços
Tem tamanho que não cabe no acaso das gavetas.

Todavia,
Outros leitores passarão sem que me percebam,
Sem que seus olhos ancorem em meus versos...
Sendo por isso um desencontro total de universos,
Um pesar calado de duas possibilidades e pontes.
Passarão pois meus ramos sem lhes propor frutos,
E os laços que faríamos e os abraços de mundos,
Com palavras de costura e a textura de duas almas,
Em contornos de sentidos e de adornos acrescidos,
Em silêncio serão guardados em caixas separadas,
E deixados às gavetas mais escuras da memória:
Eu poesia com um lado meu de encaixe rejeitado,
E o leitor consigo alheio à minha espera de olhares.

Assim, para todo “não” de um sentir há um texto só,
Uma poesia só, um poeta só, um cego só, sozinhos.
Não que detenha razões o que se diz em um poema;
Em contrário tudo de saber aqui é dito pela metade;
Poesia não prega teorias – permite-se a todas elas,
Só pede um instante de sentido e afago qualquer...
Implora por mundos compartilhados no lá fora.

Há textos sem a luz do olhar de quem os vê de fato,
Mas não há poesia sem que entre luzes haja contato:
A de fora que se dentro completa a que incorpora,
E a de dentro aquela que aflora para mundo embora.
Sigo pois a existir no instante vago dos que me veem,
A distribuir palavras para que de sede não padeçam;
As alegrias e os desejos levo aos que me abrem o dia,
E permitem que nele eu desenhe um haver diferente.

Ricardo Fabião (Março - 2010)

3 comentários:

  1. Ricardo,

    os leitores que não te percebem estão perdendo a oportunidade de conhecer um brilhante poeta.

    Continue seu caminhar. Os leitores certos virão.

    Deixei nos Diálogos um poema; uma tentativa humilde de diálogo, vez que seu poema supera qualquer expectativa.

    Chegue lá e veja.

    Beijos.

    PS: Esse poema é maravilhoso! Parabéns!

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  2. "Eu poesia com um lado meu de encaixe rejeitado,
    E o leitor consigo alheio à minha espera de olhares."

    Ricardo, esse mundo virtual nos permite chegar, entrar sem bater, visitar a casa toda, sentar para um cafezinho e um bate-papo, ou até um delicioso sarau...

    Assim me sentí ao chegar aqui. Impossível não te percerber, não mergulhar nas profundezas de sua poesias, e derrapar nas curvas de palavras tão sensíveis e belas...

    Um prazer imenso em conhecer seu blog.


    Beijos

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  3. Ava, é como já disseram os versos acima: não há poesia sem um leitor que 'veja' de fato.
    Desse modo, só há bons textos porque na outra extremidade encontram-se bons leitores.
    É algo que se completa, que se conecta devido à força dessas duas grandezas.

    Fico feliz de poder dividir algumas palavras com poetas-leitores.
    Vou passar em teu blog para recolher um pouco de luz para minha poesia.

    Beijos.
    Ricardo.

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